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Jean-Jacques Rousseau e as leis das cotas para negros nas universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro

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Jean-Jacques Rousseau e as leis das cotas para

negros nas universidades públicas do Estado do

Rio de Janeiro

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Ailton Benedito de Sousa, professor do

Ensino Médio, do Cebela – Centro Brasileiro

de Estudos Latino-Americanos, sócio-fundador

do IPCN – Instituto de Pesquisas das Culturas

Negras.

C’est précisément parce que la

force des choses tend toujours a

detruire l’egalité, que la force de

la législation doit toujours

tender à la maintenir

2

Com a questão das cotas – principalmente a celeuma e o teor dos argumentos para

sua revogação ou descaracterização – a realidade social brasileira vem-se nos mostrar com

toda sua nudez sem pudor, trazendo à cena o que se tem conseguido fingir que não se vê há

quinhentos anos: realmente, formamos um ente social com heranças físicas e espirituais de

natureza colonial e escravocrata, resultante de um concerto entre as forças colonizadoras

européias contra ou sobre bandos de seres escravizados ou escravizáveis, hoje como há

quinhentos anos, em desesperada luta por se constituírem num corpo político, a partir da

assinatura de um pacto, qualquer que seja.

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Precisamente, uma Lei e decretos. Quanto a essa, foi sancionada pelo Governador Anthony Garotinho em

9/11/2001, e institui cota de 40% para as populações negra e parda no acesso à Uerj – Universidade do Estado

do Rio de Janeiro, e à Uenf – Universidade Estadual do Norte Fluminense (Lei n. 3708, publicada no DERJ

de11/11/2001. Quanto ao mais importante Decreto (o de 30/08/2001) que entre suas disposições “assegura

aos estudantes oriundos da rede pública o direito a concorrer a 50% das vagas dos cursos e turnos oferecidos

pelas universidade públicas do Estado, obedecida a limitação de vagas existentes, a serem preenchidas de

acordo com o critério da melhor nota”. (Publicado no DOERJ de 3/09/2001. Observe-se que só as famílias

muito pobres, em sua maioria negras, matriculam os filhos na rede pública de ensino primário e secundário.

Com ambos os diplomas, tem-se um múltiplo contencioso

2

J-J Rousseau, Du contrat social – extraits, Paris, Librairie Larousse, p.54


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Nós e o Contrato Social

“Embora nascido livre, em qualquer lugar o homem é visto sob ferros” (Du contrat social,

p.16) é a primeira constatação de Rousseau, com que elimina eventuais dúvidas quanto à

sua metodologia e proposições de base: a) o pacto, se e quando houve, foi e é sempre

desrespeitado pelos que detêm o poder; b) é abundante a produção teórica com vistas a

justificar o quadro resultante desse desrespeito; c) a passagem do Estado de Natureza para o

Estado Civil, então, torna-se a fonte da infelicidade dos homens; d) sendo impossível a

volta ao Estado de Natureza, sendo impossível modificar o homem, cumpre modificar, no

sentido de aperfeiçoar, a sociedade, para o que o Autor expõe à análise de todos seu modelo

teórico.

Amado ou detestado, dentre os pais do pensamento político contemporâneo

Rousseau – um feixe ambulante de contradições, porque acima de tudo humano – é o mais

didático, o de mais clara compreensão por parte dos especialistas e não especialistas, tanto

pelo fundo contrastante em que projeta e realça suas idéias, quanto pelo poder de síntese

manifestado através de um admirável domínio dos instrumentos da retórica. Nesse sentido,

para uma melhor visualização da controversa questão das cotas para negros nas

universidades do Estado do Rio de Janeiro, apoiemo-nos nesse Autor, não só com

objetivos didáticos quanto à compreensão dos nossos impasses estruturais, mas também

com objetivo de impedir que aqueles que postulam a inconstitucionalidade das leis se

apropriem, descaracterizando-os, dos argumentos deste Autor.

Como se forma uma nação? - eis nossa primeira questão. De acordo com o modelo

teórico de Jean-Jacques Rousseau, quer em 1822, com a Independência, quer em 1889 com

a República e a Abolição, não conseguimos formar a nação, não nos qualificamos para

assinar o Pacto, o Contrato Social. Entre outras, isto equivale a dizer que mesmo se um

quarto da sociedade brasileira se diga hoje no âmbito da Soberania, da Cité ou da

Cidadania, a verdade é que todos ainda temos seqüestradas em áridos rincões do Estado de

Natureza hobbesiano partes essenciais de nosso ser individual e coletivo. A afirmação não

implica desconhecer o permanente esforço da maioria do povo brasileiro pelo

aperfeiçoamento de nossa experiência social. Com a Revolução de 30, por exemplo, se as

classes médias tendo à frente os militares, não trazem à mesa segmentos populares, com sua

diversidade étnica, para entabularem negociações visando ao Pacto, pelo menos

unilateralmente, isto é, sem consulta, agem como se a Nação fossem, criando suas bases

mínimas, há duas décadas em processo de desfazimento pelos corifeus do neoliberalismo.

De modo diferente daqueles teóricos que, como Grotius, ou mesmo Aristóteles,

vêem na força, no direito do mais forte, no direito à escravização do mais fraco, o

fundamento das sociedades humanas, para Rousseau esse fundamento é a Vontade soberana

de seres livres, vontade como expressão da razão, apanágio da Espécie. Na explicitação da

gênese das sociedades humanas, Rousseau cita Grotius, até mesmo como fundo

contrastante, que teria dúvidas sobre se o gênero humano pertence a uma centena de

homens, ou se uma centena de homens pertence ao gênero humano, tendendo esse autor do

século XVII para a primeira formulação. Segundo Rousseau, homens livres vivendo em

Estado de Natureza, detentores de uma imensa pauta de direitos que já lhes fora deferida,

inscrita em suas consciências, alienam, isto é, doam todos esses direitos e bens a um Ente


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Coletivo, ou melhor, fundem-se num inédito Ente Coletivo, sob a condição de que aí

ninguém terá nada mais que outrem, porque não terá dado nada a mais que outrem.

Observe-se que se tal jamais pôde ter ocorrido na Europa, muito menos aqui, tendo

em vista o status de colônia, cujo perfil sintético apresenta: a) poucos servidores da

empresa colonial, laicos ou religiosos, mas necessariamente escravocratas, vinculados a um

projeto de dominação externa irrevogável; b) um estamento médio inexpressivo, moral e

economicamente massacrado, e c) a imensa massa de escravos negros e índios, que nem

mesmo expectativa de vida terão. Observe-se que os servidores da empresa colonial têm a

posse efetiva de tudo

3

Com referência explícita à nossa herança escravocrata, permanentemente

escamoteada até mesmo pela política do “apagar essa mancha vergonhosa de nossa

história”, lembre-se que para Rousseau direito e escravidão são termos que se excluem.

Não pode haver contrato, encontro de vontades, expressão da razão, prerrogativa de

homens, entre senhor e escravo. Para escarnecer do absurdo de tal acordo, Rousseau fecha

o capítulo com uma brincadeira perfeitamente legível no âmbito da neolatinidade: Je fais

avec toi une convention toute à ta charge et toute à mon profit, que j’oberverai tant qu’il

me plaira, et que tu observeras tant qu’íl me plaira (p. 23).

Nada obstante os ensinamentos rouseaunianos, aqui não só se construiu um

simulacro de nação tendo por base o trabalho escravo (a imensa maioria do povo fora do

âmbito do direito) como se conseguiu perenizá-lo a partir de 1888, na medida em que se

desfigura a Abolição com as chamadas políticas públicas vinculadas ao

embranquecimento (conceder vantagens a novos e velhos imigrantes, até mesmo postos de

trabalho que poderiam ser de ex-escravos). Com a Independência até a Revolução de 30,

nada menos que durante cem anos, transferem-se essas políticas públicas para a

competência das Províncias, depois tornadas Estados. E será para o imigrante que num

sentido ou noutro se dará curso a uma série de políticas afirmativas: doação de terras (veja-

se, em especial, o Triângulo Mineiro

4

, o sul do Estado de São Paulo só por registro), até

mesmo instalações de recepção para a família imigrante (a Ilhas das Flores), em oposição

ao descaso com o povo negro: favelas, mocambos, alagados, quilombos. O objetivo

estratégico, jamais explicitado, de nossas secularmente aplicadas “políticas públicas de

embranquecimento” é absurdo mesmo: ao fazer-se desaparecer a cor negra, praticar-se-ia

3

Após leitura deste artigo, observa Rodrigo Medeiros, professor da Universidade Gama Filho, “ é importante

frisar as distintas bases de organização do corpo político pelo menos nas Américas: sociedade baseada em

pacto (Anglo-América); e sociedade baseada no “organicismo” (escravismo) (Ibero-América). Em um belo

livro chamado O espelho de Próspero (SP: Ed. Companhia das Letras, 1988), Richard Morse traça as

diferenças, a terem origem no séc. XII, da organização do corpo político nas Américas – Anglo-América e

Ibero-América – e revela as dificuldades de implantar o liberalismo político em países como o Brasil. No

século XIX, os nossos liberais preferiram não se confrontar com os escravocratas e dedicaram-se a formular

leis, acreditando que estas gerariam efeitos moralizantes em nossa sociedade. Alguns aderiram ao liberalismo

econômico e

aproveitaram para legitimar, desta forma, a escravidão. Até o marxismo foi

problemático entre nós, revela R. Morse”.

4

Essa região no Estado de Minas Gerais, oTriângulo Mineiro, de abundantes terras roxas, foi graciosamente

dada a imigrantes de cultura árabe sob a promessa de que aqui viessem a plantar cítricos. É a origem do

esteio econômico da família de muitas personalidades que, durante os 20 anos de ditadura, dominaram o

nosso Ministério da Justiça.


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algo como um inocente genocídio por meios naturais ou auto-assumido. Em um ou dois

séculos, diziam, os negros teriam desaparecido, de um modo ou de outro: extermínio físico

ou miscigenação. Sem que se pensasse que nessa segunda hipótese o contingente branco

diminuiria...

Com referência à Lei Áurea, até mesmo por elidir a questão da indenização, é nada

mais nada menos que um ato político imoral, o mais conspícuo exemplo de ‘lei

reverenciada, mas que jamais pegou’, fato invisível aos olhos míopes da historiografia

brasileira, não obstante existir, ainda hoje, nos quadros de nossa Polícia Federal, unidade

para o combate à prática da escravização, generalizada nas áreas de latifúndio. Assim, a

ainda chamada Lei Áurea, que devia ter sido uma senha para o deslanchar de um conjunto

de políticas públicas afirmativas da nacionalidade, simboliza a escamoteação dessa linha de

políticas públicas. A atual postulação da questão das cotas deverá ser vista nesta

perspectiva.

Na ausência do Pacto

Chame-se a si mesma de nação, de povo ou o que valha, para Rousseau, numa

relação despótica, constituída, de um lado, por uma cadeia de proprietários, chefes ou

senhores e, de outro, por uma multidão de servos, escravos, súditos ou o que valha, quadro

em que a toda hora, desde sempre, nos reconhecemos, não se pode falar daquilo que Du

contrat social define como Povo, Nação, e a justificativa é lídima: aí não há noção nem de

‘bem público’ nem de ‘corpo político’ (p.23). As coortes dos PC’s Farias e dos Collor’s do

Brasil que o digam.

Como seria em essência uma verdadeira Nação? De modo diferente do que

ocorre na vida real, na hipótese ou no ‘querer’ de Rousseau, chega-se a um momento em

que os obstáculos que dificultam a conservação dos homens em estado de natureza se

fazem superiores às forças que esse ou aquele indivíduo possa exercer para continuar nesse

estado. É quando se coloca o desafio de “Achar uma forma de associação que defenda e

proteja de toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um ao

se unir ao todo, não obedeça senão a si mesmo e continue tão livre quanto antes” (p.24).. É

quando cumpre elaborar um Pacto.

As cláusulas desse Contrato podem se reduzir a apenas uma: alienação total de cada

associado, com todos os seus bens e direitos, à comunidade. Todos e cada um passam a

formar uma entidade constituída de partes iguais, mas inseparáveis, em que ninguém

poderá dizer que deu mais, portanto merece mais, ou menos, portanto merece menos. Cada

qual se dando a todos, não se dá a ninguém, não havendo nenhum associado do qual se

retire mais, ou menos, do que se deu de si mesmo. Necessariamente, na assinatura do Pacto,

na formação da Nação, “ganha-se o equivalente do que se cede e, ainda, ganha-se mais

força para que se conserve o que se tem” (p.25).

Questão nodular no estabelecimento desse pacto é a dos bens reais trazidos do

estado de natureza, tornados agora, por um lado, propriedade privada; por outro, coisa

pública. Mas entenda-se que a sacralidade ou inviolabilidade da propriedade privada diz

respeito àquela que é compatível com a liberdade individual. É inimaginável o exercício

das prerrogativas do ser livre, ou seja, possibilidade de escolha, de disposição de si mesmo

e responsabilidade por seus atos, à ausência de meios materiais com que esse homem possa

conservar-se vivo para dispor de si, para escolher, para agir com responsabilidade. Esteio


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da liberdade individual, a propriedade privada não pode se tornar instrumento da

escravização do outro. “Pode acontecer que os homens comecem a se unir antes que

possuam algo e que, apossando-se em seguida de um terreno suficiente para todos, venham

a usufruí-lo em comum ou o dividam entre si, seja igualmente, seja consoante proporções

estabelecidas pelo Soberano” (p.32), com que fica legitimada a Reforma Agrária,

concluímos.

Soberano é um dos termos pelos quais é referida essa entidade formada pela doação

absoluta de homens saídos do estado de natureza. De modo nenhum uma pessoa, Soberano

é um corpo moral e político, um ente público que se forma pela união de seres livres que

continuam livres; enfim, é a Nação, também referida por Cité (Cidade, donde Cidadania),

República ou Corpo Político. Essa entidade é também chamada por seus membros de

Estado, quando passivo, isto é, no contexto da obediência a suas leis; de Soberano, quando

ativo, isto é, formatando e reformatando o ser social; ou de Potência, quando em relação a

entidades semelhantes.

Parte de um todo inseparável, na Nação cada indivíduo pode ser visto como um elo

a integrar-se por dois outros: de um lado, o Soberano, já que como partícula indivisível do

Soberano ele é Soberano em relação a circunstanciais particulares; por outro, o Estado, que

é o Soberano em relação às suas leis. Com essa comparação temos o Cidadão, credor de

direitos, e devedor de obrigações.

Fora desse modelo rousseauniano, não deveria haver definição para Cidadania, essa

palavra que na boca de muitos brasileiros, até mesmo pela ausência de uma origem

consensual para nossa experiência social, tornou-se algo como uma disciplina escolar

extracurricular, cuja falaciosa compreensão é moeda de curso livre no Brasil. O objetivo é

convencer o excluído de que ele mesmo é o culpado de sua exclusão, porque mal-educado,

de hábitos anti-sociais. Em primeiro lugar, a se seguir Rousseau, cidadania não se ensina.

Surgido o Soberano, a Cité, o Estado, surge o Cidadão e sua condição de cidadania. Desse

mesmo modo, é absurdo falar em cidadão de primeira e de segunda classes: há pacto ou não

há pacto; há cidadão ou não há cidadão.

Insista-se que estamos diante de um modelo teórico, uma abstração ideal. A

distância entre sua consistência lógica no plano conceitual e no da realidade, deveria nos

levar a uma de duas: tentar adequar a realidade, a sociedade, ao modelo, ou superar o

modelo, abandonando-o. Censurável é o uso que se faça dos elementos do modelo ou de

sua lógica interna onde ele jamais tenha sido levado à prática. O intenso curso que depois

de 1988 se vem dando ao termo cidadania indica que se lhe estão atribuindo significado não

só impreciso, mas contraditório, anti-Rousseau. Hoje, em harmonia com as teses da

democracia participativa, cidadão terá que ser o excluído que luta para incluir-se

construindo o contexto de sua inclusão... Mas este é um guerrilheiro, um revolucionário,

termos hoje tornados tabus, mas já há muito cunhados na língua.

Retomando a questão da essência da Nação, ressalte-se que a Soberania, que se

manifesta como exercício da vontade geral de um povo, é inalienável e indivisível, e o

Soberano, que não é senão um ente coletivo, não pode ser representado a não ser por si

mesmo: o poder pode se transmitir, mas de modo nenhum a Vontade (p.33 ). E para evitar

qualquer tipo de truísmo na relação de poder entre Soberano e Estado, Rousseau observa

que “a deliberação pública que pode obrigar todos os súditos para com o Soberano em

função de ambas as relações sob as quais cada um dos particulares é considerado, não pode,

por razão contrária, obrigar o Soberano para consigo mesmo, e que, por conseqüência, é


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contra a natureza do Corpo Político que o Soberano se imponha uma lei que não possa

violar.....por onde se vê que não há nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental

obrigatória para o Corpo do Povo, nem mesmo o Contrato Social.” (p.27). É neste sentido

que o Povo é Soberano. Observe-se que aqui estaremos diante de uma formulação

eminentemente ambígua, se se entende Soberano como o segmento social e politicamente

hegemônico.

E como era ou é o Estado de Natureza? Das proposições básicas até aqui

comentadas, faltou fazer algumas explicitações sobre esse conceito, que em Rousseau, de

modo contrário a Hobbes, não se traduz por um contexto de guerra interminável de todos

contra todos e de cada um contra cada um. O estado de natureza se caracterizaria por um

contexto social de inocência, portanto de amoralidade, potencialmente idílico ou trágico.

Não há noção de propriedade, mas de uma posse contingente, em comunhão inclusive com

os animais; quando os homens se defrontam com interesses diferentes, matam e morrem,

mas não há noção de guerra, uma relação que, segundo Rousseau – parece que falando

diretamente para os ‘Bushes’ da vida – só pode existir de Estado para Estado, sempre

vinculando bens reais, de valor patrimonial, jamais valores pessoais

4

.

Vivendo no estado de natureza sob a determinação dos fatores ambientais, é de se

imaginar nesses núcleos humanos a manifestação das forças espirituais da Espécie: – o

Bom Selvagem num Éden de fartura, quadro que, à ocorrência de um desequilíbrio

qualquer, transfigurar-se-á em desgraças, privações, lutas de matar e morrer. “A passagem

do estado de natureza ao estado civil produz no homem mudanças consideráveis,

substituindo em sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que

até então lhe faltava. É somente então que, a voz do dever sucedendo à impulsão física e o

direito ao apetite, o homem que até esse momento não tinha olhado senão para si mesmo,

vê-se obrigado a agir segundo outros princípios, e a consultar sua razão antes de ouvir

suas inclinações. Embora ele se prive, neste estado, de várias vantagens que tinha no

estado de natureza, ele ganha outras vantagens maiores, suas faculdades se exercitam e se

desenvolvem, suas idéias se estendem, seus sentimentos se enobrecem, sua alma toda

inteira se eleva a tal ponto que, se os abusos desta nova condição não o degradassem

muitas vezes em níveis abaixo da condição de que ele acaba de sair, o homem devia

bendizer sem cessar o instante feliz que de lá o arrancou para sempre, e que, de um animal

estúpido e limitado, fez um ser inteligente e um homem”. (p. 29).

Como funcionaria o modelo? Como encontrar a vontade da Nação e como expressá-

la? Com os limites de tempo e espaço inerentes a texto dessa natureza, vamos por partes.

A generalidade da Lei

Com o Pacto confere-se existência ao Corpo Político; com a lei dá-se-lhe

movimento, expressando-se sua vontade, uma vez que “o ato primitivo pelo qual este corpo

se forma e se une, nada determina quanto ao que deve fazer para se manter” (p.42). Nesse

4

“A guerra não é de modo nenhum uma relação de homem a homem, mas uma relação de Estado para

Estado, na qual os particulares não são inimigos senão acidentalmente, de modo nenhum como homens nem

mesmo como cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim,

um Estado não pode ter como inimigos senão outros Estados, de modo nenhum homens, entendido que entre

coisas de diversas naturezas não se pode fixar um nexo verdadeiro”. Idem, p. 21.


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sistema, a questão da generalidade da lei é pedra angular: “Já disse não haver vontade

geral sobre um objeto particular. Efetivamente, este objeto particular está dentro do

Estado ou fora do Estado. Se está fora, uma vontade que lhe é exterior não é geral em

relação a ele mesmo; e se este objeto está dentro do Estado, dele faz parte: então se forma

entre o todo e sua parte uma relação que dele faz dois corpos separados, um sendo a

parte, e o outro, o todo menos essa parte. Mas o todo menos uma parte não é mais o todo

e, pelo quanto essa relação subsista, não há mais o todo e sim duas partes desiguais: de

onde se segue que a vontade de uma não é igualmente geral relativamente a outra” (p.43).

A matéria sobre a qual se legisla é geral como a vontade que a estatui. “É a este ato

que chamo de uma lei”. A lei considera (tanto) os sujeitos incorporados (quanto) as ações,

como abstratos. “Assim a lei pode estatuir que haverá privilégios, mas ela não os pode

conceder nominalmente a uma pessoa; a lei pode fazer várias Classes de Cidadãos, atribuir

mesmo as qualidades que darão direito a essas Classes, mas ela não pode nomear tais ou

quais para nelas serem admitidos...em uma palavra, toda função que se reporte a um objeto

individual não pertence à potência legislativa” (p.43). Em coerência com essa definição,

será uma Re(s)pública todo Estado regido pela lei como aqui entendida, pois nele só o

interesse público governa, e coisa pública é tudo, é toda e qualquer coisa (p.44).

Como espécies de leis, fontes do direito, Rousseau nomeia quatro: a) as leis

políticas, que regulam as relações do todo com o todo, ou de outro modo, do “Soberano

para com o Estado”; b) aquelas que regulam as relações dos particulares entre si e com o

Estado, de onde nascem as leis civis; c) as leis criminais, ou seja, as que sancionam todas as

demais, d) e por último, as normas de moralidade, os costumes, a opinião pública.

Cumpre, porém, distinguir, no modelo, Lei de Atos de Magistratura. Se esse

coletivo que se forma a partir de doação unitária, um a um, no ato de votar o faz

unitariamente, as delta-diferenças então se somam e se anulam, como resultado surgindo a

Lei. Mas se no ato de votar o coletivo se divide em partidos, associações etc., as diferenças

então surgem a partir de números de grande magnitude, não mais se podendo falar em Lei,

em Vontade Geral, mas em determinação particular, em Decreto, em Ato de Magistratura.

O Legislador e o Representante

Ente de natureza moral, nascido da total e absoluta doação de todos, a Vontade

Geral ou o Soberano só conhece, diante do devir, uma direção: a do bem-estar geral, a da

igualdade. Nos quadros da realidade, porém, a marcha em direção ao devir requer a

elaboração de mapas, requer batedores, requer até motivos para o caminhar. Além dessas

ausências, contam-se outras limitações à Vontade Geral. “Quer-se sempre o bem-estar, mas

nem sempre esse bem-estar é visto. Se por um lado o povo jamais é corrompido, na maioria

das vezes é enganado, quando então parece querer o mal” (p.35).

Fora as imposições da própria realidade social, no modelo há questões inerentes a

sua coerência interna. Já vimos que para Rousseau a soberania não pode alienar-se nem

dividir-se, só podendo ser representada por si mesma. Nesse quadro, como ficaria a

questão da representação? Como organizar, como ouvir a Vontade Geral?

Rousseau não nos resolve esses problemas. Na elaboração de mapas e de rotas ao

devir de um povo, ele encarece a necessidade do Legislador, o Iluminado, a ter como

parâmetros Licurgo, Sólon, Moisés e outros heróis de mesma envergadura. A

generalizadamente aceita solução da Representação, ele a deriva, como coisa espúria, de


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indignas práticas feudais

4

.De modo diferente da visão atual, em que os deputados, ao

receberem o mandato dizem falar em nome da ‘Nação’, mesmo que tenham como

patronos grupos multinacionais, para Rousseau eles não são senão comissários, nada

podendo concluir definitivamente. “Toute loi que le Peuple en personne n’a pas ratifiée est

nulle; ce n’est pas point une loi” (p.80)

As ambigüidades de seu pensamento podem explicar a solução hoje vigente em

quase todo mundo, segundo a qual, na formação do Estado-nação, anular-se-iam de modo

absoluto (exceção feita para os segmentos excluídos) todas as diferenças entre os membros

de uma formação social – nascimento, posses, dons naturais, nível cultural etc. – dando-se

aos incluídos o status de cidadão, um santo leigo

5

, que mesmo sem ter participado de pacto

nenhum, é depositário da soberania nacional. A vontade, o querer desse “Soberano” se

defere a representantes, geralmente eleitos por sufrágio universal, cuja função antes que de

representar, é a de falar e agir em nome da ‘nação’. Apontam-se entre as fraquezas do

modelo: a) vacuidade do conceito ‘cidadão’ quando oposto aos homens reais, suporte de

marcadas diferenças de natureza sociológica; b) paradoxo da representação, a qual se

arroga o poder de falar em nome da nação, mas é estipendiada por grupos empresariais,

geralmente multinacionais, a cujos interesses serve; d) a força conjuntural dos grupos extra-

constitucionais que atuam no vazio do conceito cidadão, retirando da esfera governamental

o poder do Estado.

.

A constitucionalidade das leis das cotas para negros

No cinzelamento do arcabouço de nossa específica formação nacional, aqui e ali as

ditas elites brasileiras tomam, de Rousseau, esse ou aquele aspecto formal, como é o caso

do preâmbulo das nossas recentes constituições que, em função até das deficiências do

instituto da representação, não são nem jamais pretenderam ser o Pacto. No caso do Brasil,

seria mais apropriado dizer que as elites, sem qualquer espécie de pejo, tomam por

parâmetro ninguém mais que Karl Marx, para quem a função do Estado é promover a

organização social, política e econômica de uma classe às expensas das demais. E uma vez

que no Brasil as classes, quando polarizadas, têm cor, vê-se formada a base para a

constituição do grande contencioso nacional representado pela constitucionalidade da lei

das cotas.

Para grande número de advogados, vez por outra deslastrados em função das nossas

constantes entradas nos desvios ou porões da ilegalidade institucional, mas sempre míopes

em relação às nossas deformações de nascença, essas peças legislativas são

4

“Tão logo que o serviço público deixa de ser o principal negócio dos Cidadãos, tão logo eles preferem

dispor de suas bolsas antes que de suas pessoas, o Estado está perto de sua ruína. É preciso ir à guerra?, eles

pagam uma tropa e ficam em casa; É preciso ir ao Conselho?, eles nomeiam deputados e ficam em casa. À

força da preguiça e do dinheiro, eles enfim dispõem de soldados para sobrepor-se à pátria e de representantes

para vendê-la” . Idem, p.79.

5

“É o homem esclarecido pela razão, desembaraçados dos preconceitos de classe e das preocupações

inerentes à sua condição econômica, capaz de formular uma opinião sobre a coisa pública, abstraindo das suas

preferências pessoais, em suma uma espécie de santo laico ao qual se concede a qualidade de membro do

soberano precisamente porque o seu desinteresse é penhor do uso prudente que fará da sua soberania....” Cf.

Georges Burdeau, A democracia, Publicações Europa-América, Lisboa, s.d. p.20.


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inconstitucionais, já que ferem de pronto o princípio da generalidade das leis. Fazem tal

afirmação amparando-se principalmente nos ensinamentos de Rousseau, por um lado

esquecendo que não constituímos o modelo de nação por ele prefigurado; por outro,

fazendo vistas grossas às centenas de leis particulares (o que devia ser um contra-senso)

que têm abrigo no direito positivo brasileiro: privilégios para descendentes de nossa

discutível nobreza, até pouco tempo “bibelôs mensais de milhares de reais para filhas de

oficiais das forças armadas, das polícias, em muitos Estados para as esposas de juízes,

desembargadores etc.,etc. No lado puramente econômico, perdão de dívidas, de juros, ou

incentivos fiscais não só a esse ou àquele segmento, mas a essa e àquela empresa ou

pessoa. Que nada seja falado sobre as leis específicas que concedem privilégios a membros

da ex-família reinante, nem das inovações da atual constituição com relação à múltipla

nacionalidade.

E que não se fale também das cotas que sempre existiram privilegiando os brancos,

dado o fato de que aqui a pobreza é levada a ter cor. Também não falemos em certos

estamentos dessa ou daquela corporação militar cujos altos escalões eram ainda nos anos

90 categoricamente vedados aos negros. Não se fale na magistratura. Não se fale no setor

acadêmico de modo geral, em carreiras como medicina, desenho industrial, comunicação.

Mas fale-se, e fale-se muito em pedagogia, serviço social, letras...Apresentado aqui como

elementos para que brancos e negros nos conheçamos melhor, reflita-se sobre o fato de que

as elites norte-americanas, até mesmo para alardearem que são ‘ungidas pela graça divina’,

jamais matriculariam os filhos numa universidade pública. Aqui, pessoas de posses vão a

restaurantes populares, tomam de assaltos os colégios de aplicação públicos, assenhoreiam-

se dos cursos universitários cujos diplomas conferem status, sem que jamais se vejam tais

fatos como uma lei de cotas às avessas.

Lembre-se que fora do modelo rousseauniano, carece de amparo ético, portanto

político, a referência ao princípio da generalidade das leis no que tange às leis das cotas.

Imperfeitas quanto possam estar, já que são dois diplomas, de propósito sancionados para

que um inviabilizasse o outro, eles nos sinalizam quanto às imperfeições do nosso

‘acochambramento’ social, na medida em que no contexto da violência urbana e rural, no

contexto da fome, do desemprego, da ressurgência da escravidão, no contexto do

multimilionário negócio da droga, um iceberg em que em certas cidades apenas a cabeça é

negra, enfim, no contexto da discriminação racial, do genocídio étnico e cultural, essas leis

nos convidam à releitura de Do contrato social para que vejamos quão perdidos estamos,

não nos descaminhos do Estado de Natureza, mas no da Barbárie. É chato ser brasileiro

assim.