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Jean-Jacques
Rousseau e as leis das cotas para negros nas
universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro
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Jean-Jacques
Rousseau e as leis das cotas para
negros nas universidades públicas do Estado do
Rio de Janeiro
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Ailton Benedito de Sousa, professor do
Ensino Médio, do Cebela – Centro Brasileiro
de Estudos Latino-Americanos, sócio-fundador
do IPCN – Instituto de
Pesquisas das Culturas
Negras.
C’est précisément parce
que la
force des choses tend
toujours a
detruire l’egalité, que
la force de
la législation doit
toujours
tender à la maintenir
Com a questão das cotas –
principalmente a celeuma e o teor dos argumentos para
sua revogação ou
descaracterização – a realidade social brasileira vem-se nos mostrar com
toda sua nudez sem pudor,
trazendo à cena o que se tem conseguido fingir que não se vê há
quinhentos anos: realmente,
formamos um ente social com heranças físicas e espirituais de
natureza colonial e
escravocrata, resultante de um concerto entre as forças colonizadoras
européias contra ou sobre
bandos de seres escravizados ou escravizáveis, hoje como há
quinhentos anos, em
desesperada luta por se constituírem num corpo político, a partir da
assinatura de um pacto,
qualquer que seja.
1
Precisamente, uma Lei e decretos. Quanto a essa, foi
sancionada pelo Governador Anthony Garotinho em
9/11/2001, e institui cota de 40% para as populações
negra e parda no acesso à Uerj – Universidade do Estado
do Rio de
Janeiro, e à Uenf – Universidade Estadual do Norte Fluminense (Lei n. 3708,
publicada no DERJ
de11/11/2001.
Quanto ao mais importante Decreto (o de 30/08/2001) que entre suas disposições
“assegura
aos
estudantes oriundos da rede pública o direito a concorrer a 50% das vagas dos
cursos e turnos oferecidos
pelas
universidade públicas do Estado, obedecida a limitação de vagas existentes, a
serem preenchidas de
acordo com o critério da melhor nota”. (Publicado no
DOERJ de 3/09/2001. Observe-se
que só as famílias
muito
pobres, em sua maioria negras, matriculam os filhos na rede pública de ensino
primário e secundário.
Com ambos os
diplomas, tem-se um múltiplo contencioso
2
J-J Rousseau, Du contrat social –
extraits, Paris, Librairie Larousse, p.54
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Nós e o Contrato Social
“Embora nascido livre, em
qualquer lugar o homem é visto sob ferros” (Du contrat social,
p.16) é a primeira
constatação de Rousseau, com que elimina
eventuais dúvidas quanto à
sua metodologia e
proposições de base: a) o pacto, se e quando houve, foi e é sempre
desrespeitado pelos que
detêm o poder; b) é abundante a produção teórica com vistas a
justificar o quadro
resultante desse desrespeito; c) a passagem do Estado de Natureza para o
Estado Civil, então,
torna-se a fonte da infelicidade dos homens; d) sendo impossível a
volta ao Estado de Natureza,
sendo impossível modificar o homem, cumpre modificar, no
sentido de aperfeiçoar, a
sociedade, para o que o Autor expõe à análise de todos seu modelo
teórico.
Amado ou detestado, dentre
os pais do pensamento político contemporâneo
Rousseau – um feixe ambulante de contradições, porque acima
de tudo humano – é o mais
didático, o de mais clara
compreensão por parte dos especialistas e não especialistas, tanto
pelo fundo contrastante em
que projeta e realça suas idéias, quanto pelo poder de síntese
manifestado através de um
admirável domínio dos instrumentos da retórica. Nesse sentido,
para uma melhor visualização
da controversa questão das cotas para negros nas
universidades do Estado do
Rio de Janeiro, apoiemo-nos nesse Autor, não só com
objetivos didáticos quanto à
compreensão dos nossos impasses estruturais, mas também
com objetivo de impedir que
aqueles que postulam a inconstitucionalidade das leis se
apropriem,
descaracterizando-os, dos argumentos deste Autor.
Como se forma uma nação? - eis nossa primeira questão. De acordo com o modelo
teórico de Jean-Jacques Rousseau, quer em 1822, com a Independência, quer
em 1889 com
a República e a Abolição,
não conseguimos formar a nação, não nos qualificamos para
assinar o Pacto, o Contrato
Social. Entre outras, isto equivale a dizer que mesmo se um
quarto da sociedade
brasileira se diga hoje no âmbito da Soberania, da Cité ou da
Cidadania, a verdade é que
todos ainda temos seqüestradas em áridos rincões do Estado de
Natureza hobbesiano partes essenciais de nosso ser individual
e coletivo. A afirmação não
implica desconhecer o
permanente esforço da maioria do povo brasileiro pelo
aperfeiçoamento de nossa
experiência social. Com a Revolução de 30, por exemplo, se as
classes médias tendo à
frente os militares, não trazem à mesa segmentos populares, com sua
diversidade étnica, para
entabularem negociações visando ao Pacto, pelo menos
unilateralmente, isto é, sem
consulta, agem como se a Nação fossem, criando suas bases
mínimas, há duas décadas em
processo de desfazimento pelos corifeus do neoliberalismo.
De modo diferente daqueles
teóricos que, como Grotius, ou mesmo Aristóteles,
vêem na força, no direito do mais forte, no direito à escravização do
mais fraco, o
fundamento das sociedades
humanas, para Rousseau esse fundamento é a
Vontade soberana
de seres livres, vontade
como expressão da razão, apanágio da Espécie. Na explicitação da
gênese das sociedades
humanas, Rousseau cita Grotius, até mesmo
como fundo
contrastante, que teria
dúvidas sobre se o gênero humano pertence a uma centena de
homens, ou se uma centena
de homens pertence ao gênero humano, tendendo
esse autor do
século XVII para a primeira
formulação. Segundo Rousseau, homens livres
vivendo em
Estado de Natureza,
detentores de uma imensa pauta de direitos que já lhes fora deferida,
inscrita em suas
consciências, alienam, isto é, doam todos esses direitos e bens a um Ente
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Coletivo, ou melhor,
fundem-se num inédito Ente Coletivo, sob a condição de que aí
ninguém terá nada mais que
outrem, porque não terá dado nada a mais que outrem.
Observe-se que se tal jamais
pôde ter ocorrido na Europa, muito menos aqui, tendo
em vista o status de
colônia, cujo perfil sintético apresenta: a) poucos servidores da
empresa colonial, laicos ou
religiosos, mas necessariamente escravocratas, vinculados a um
projeto de dominação externa
irrevogável; b) um estamento médio inexpressivo, moral e
economicamente massacrado, e
c) a imensa massa de escravos negros e índios, que nem
mesmo expectativa de vida
terão. Observe-se que os servidores da empresa colonial têm a
Com referência explícita à
nossa herança escravocrata, permanentemente
escamoteada até mesmo pela
política do “apagar essa mancha vergonhosa de nossa
história”, lembre-se que
para Rousseau direito e escravidão são termos
que se excluem.
Não pode haver contrato,
encontro de vontades, expressão da razão, prerrogativa de
homens, entre senhor e
escravo. Para escarnecer do absurdo de tal acordo, Rousseau
fecha
o capítulo com uma
brincadeira perfeitamente legível no âmbito da neolatinidade: Je fais
avec toi une convention
toute à ta charge et toute à mon profit, que j’oberverai tant qu’il
me plaira, et que tu
observeras tant qu’íl me plaira (p.
23).
Nada obstante os
ensinamentos rouseaunianos, aqui não só se construiu um
simulacro de nação tendo por
base o trabalho escravo (a imensa maioria do povo fora do
âmbito do direito) como se
conseguiu perenizá-lo a partir de 1888, na medida em que se
desfigura a Abolição com as
chamadas políticas públicas vinculadas ao
embranquecimento (conceder
vantagens a novos e velhos imigrantes, até mesmo postos de
trabalho que poderiam ser de
ex-escravos). Com a Independência até a Revolução de 30,
nada menos que durante cem
anos, transferem-se essas políticas públicas para a
competência das Províncias,
depois tornadas Estados. E será para o imigrante que num
sentido ou noutro se dará
curso a uma série de políticas afirmativas: doação de terras (veja-
se, em especial, o Triângulo Mineiro
, o sul do Estado de São Paulo só por registro), até
mesmo instalações de
recepção para a família imigrante (a Ilhas das Flores), em oposição
ao descaso com o povo negro: favelas, mocambos, alagados, quilombos. O objetivo
estratégico, jamais
explicitado, de nossas secularmente aplicadas “políticas públicas de
embranquecimento” é absurdo
mesmo: ao fazer-se desaparecer a cor negra, praticar-se-ia
3
Após leitura
deste artigo, observa Rodrigo Medeiros, professor da Universidade Gama Filho, “
é importante
frisar as
distintas bases de organização do corpo político pelo menos nas Américas:
sociedade baseada em
pacto
(Anglo-América); e sociedade baseada no “organicismo” (escravismo) (Ibero-América).
Em um belo
livro
chamado O espelho de Próspero (SP: Ed. Companhia das
Letras, 1988), Richard Morse traça as
diferenças, a terem origem no séc. XII, da organização
do corpo político nas Américas – Anglo-América e
Ibero-América – e revela as dificuldades de implantar
o liberalismo político em países como o Brasil. No
século XIX, os nossos liberais preferiram não se
confrontar com os escravocratas e dedicaram-se a formular
leis, acreditando que estas gerariam efeitos
moralizantes em nossa sociedade. Alguns aderiram ao liberalismo
econômico e
aproveitaram para legitimar, desta forma, a
escravidão. Até o
marxismo foi
problemático
entre nós, revela R. Morse”.
4
Essa região
no Estado de Minas Gerais, oTriângulo Mineiro, de abundantes terras roxas, foi
graciosamente
dada a
imigrantes de cultura árabe sob a promessa de que aqui viessem a plantar
cítricos. É a origem do
esteio
econômico da família de muitas personalidades que, durante os 20 anos de
ditadura, dominaram o
nosso
Ministério da Justiça.
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algo como um inocente
genocídio por meios naturais ou auto-assumido. Em um ou dois
séculos, diziam, os negros
teriam desaparecido, de um modo ou de outro: extermínio físico
ou miscigenação. Sem que se
pensasse que nessa segunda hipótese o contingente branco
diminuiria...
Com referência à Lei Áurea,
até mesmo por elidir a questão da indenização, é nada
mais nada menos que um ato
político imoral, o mais conspícuo exemplo de ‘lei
reverenciada, mas que jamais
pegou’, fato invisível aos olhos míopes da historiografia
brasileira, não obstante
existir, ainda hoje, nos quadros de nossa Polícia Federal, unidade
para o combate à prática da
escravização, generalizada nas áreas de latifúndio. Assim, a
ainda chamada Lei Áurea, que
devia ter sido uma senha para o deslanchar de um conjunto
de políticas públicas
afirmativas da nacionalidade, simboliza a escamoteação dessa linha de
políticas públicas. A atual
postulação da questão das cotas deverá ser vista nesta
perspectiva.
Na ausência do Pacto
Chame-se a si mesma de
nação, de povo ou o que valha, para Rousseau,
numa
relação despótica,
constituída, de um lado, por uma cadeia de proprietários, chefes ou
senhores e, de outro, por
uma multidão de servos, escravos, súditos ou o que valha, quadro
em que a toda hora, desde
sempre, nos reconhecemos, não se pode falar daquilo que Du
contrat social define como Povo, Nação, e a justificativa é lídima:
aí não há noção nem de
‘bem público’ nem de ‘corpo
político’ (p.23). As coortes dos PC’s Farias e dos Collor’s do
Brasil que o digam.
Como seria em essência
uma verdadeira Nação? De modo
diferente do que
ocorre na vida real, na
hipótese ou no ‘querer’ de Rousseau, chega-se
a um momento em
que os obstáculos que
dificultam a conservação dos homens em estado de natureza se
fazem superiores às forças
que esse ou aquele indivíduo possa exercer para continuar nesse
estado. É quando se coloca o
desafio de “Achar uma forma de associação que defenda e
proteja de toda força comum
a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um ao
se unir ao todo, não obedeça
senão a si mesmo e continue tão livre quanto antes” (p.24).. É
quando cumpre elaborar um
Pacto.
As cláusulas desse Contrato
podem se reduzir a apenas uma: alienação total de cada
associado, com todos os seus
bens e direitos, à comunidade. Todos e cada um passam a
formar uma entidade
constituída de partes iguais, mas inseparáveis, em que ninguém
poderá dizer que deu mais,
portanto merece mais, ou menos, portanto merece menos. Cada
qual se dando a todos, não
se dá a ninguém, não havendo nenhum associado do qual se
retire mais, ou menos, do
que se deu de si mesmo. Necessariamente, na assinatura do Pacto,
na formação da Nação,
“ganha-se o equivalente do que se cede e, ainda, ganha-se mais
força para que se conserve o
que se tem” (p.25).
Questão nodular no estabelecimento desse pacto é a dos bens reais
trazidos do
estado de natureza, tornados
agora, por um lado, propriedade privada; por outro, coisa
pública. Mas entenda-se que
a sacralidade ou inviolabilidade da propriedade privada diz
respeito àquela que é
compatível com a liberdade individual. É inimaginável o exercício
das prerrogativas do ser
livre, ou seja, possibilidade de escolha, de disposição de si mesmo
e responsabilidade por seus
atos, à ausência de meios materiais com que esse homem possa
conservar-se vivo para
dispor de si, para escolher, para agir com responsabilidade. Esteio
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da liberdade individual, a propriedade privada não pode se tornar
instrumento da
escravização do outro. “Pode
acontecer que os homens comecem a se unir antes que
possuam algo e que,
apossando-se em seguida de um terreno suficiente para todos, venham
a usufruí-lo em comum ou o
dividam entre si, seja igualmente, seja consoante proporções
estabelecidas pelo Soberano” (p.32), com que fica legitimada a Reforma
Agrária,
concluímos.
Soberano é um dos termos
pelos quais é referida essa entidade formada pela doação
absoluta de homens saídos do
estado de natureza. De modo nenhum uma pessoa, Soberano
é um corpo moral e político,
um ente público que se forma pela união de seres livres que
continuam livres; enfim, é a
Nação, também referida por Cité (Cidade, donde Cidadania),
República ou Corpo Político. Essa entidade é também
chamada por seus membros de
Estado, quando passivo, isto é, no contexto da obediência a
suas leis; de Soberano, quando
ativo, isto é, formatando e
reformatando o ser social; ou de Potência, quando em relação a
entidades semelhantes.
Parte de um todo
inseparável, na Nação cada indivíduo pode ser visto como um elo
a integrar-se por dois
outros: de um lado, o Soberano, já que como partícula indivisível do
Soberano ele é Soberano em
relação a circunstanciais particulares; por outro, o Estado, que
é o Soberano em relação às
suas leis. Com essa comparação temos o Cidadão, credor de
direitos, e devedor de
obrigações.
Fora desse modelo
rousseauniano, não deveria haver definição para Cidadania, essa
palavra que na boca de
muitos brasileiros, até mesmo pela ausência de uma origem
consensual para nossa
experiência social, tornou-se algo como uma disciplina escolar
extracurricular, cuja
falaciosa compreensão é moeda de curso livre no Brasil. O objetivo é
convencer o excluído de que
ele mesmo é o culpado de sua exclusão, porque mal-educado,
de hábitos anti-sociais. Em
primeiro lugar, a se seguir Rousseau,
cidadania não se ensina.
Surgido o Soberano, a Cité,
o Estado, surge o Cidadão e sua condição de cidadania. Desse
mesmo modo, é absurdo falar
em cidadão de primeira e de segunda classes: há pacto ou não
há pacto; há cidadão ou não
há cidadão.
Insista-se que estamos
diante de um modelo teórico, uma abstração ideal. A
distância entre sua consistência lógica no plano conceitual e no da
realidade, deveria nos
levar a uma de duas: tentar adequar a realidade, a sociedade, ao modelo,
ou superar o
modelo, abandonando-o. Censurável
é o uso que se faça dos elementos do modelo ou de
sua lógica interna onde ele
jamais tenha sido levado à prática. O intenso curso que depois
de 1988 se vem dando ao
termo cidadania indica que se lhe estão atribuindo significado não
só impreciso, mas
contraditório, anti-Rousseau. Hoje, em
harmonia com as teses da
democracia participativa,
cidadão terá que ser o excluído que luta para incluir-se
construindo o contexto de
sua inclusão... Mas este é um
guerrilheiro, um revolucionário,
termos hoje tornados tabus,
mas já há muito cunhados na língua.
Retomando a questão da
essência da Nação, ressalte-se que a Soberania, que se
manifesta como exercício da
vontade geral de um povo, é inalienável e indivisível, e o
Soberano, que não é senão um
ente coletivo, não pode ser representado a não ser por si
mesmo: o poder pode se
transmitir, mas de modo nenhum a Vontade (p.33 ). E para evitar
qualquer tipo de truísmo na
relação de poder entre Soberano e Estado, Rousseau
observa
que “a deliberação pública
que pode obrigar todos os súditos para com o Soberano em
função de ambas as relações
sob as quais cada um dos particulares é considerado, não pode,
por razão contrária, obrigar
o Soberano para consigo mesmo, e que, por conseqüência, é
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contra a natureza do Corpo
Político que o Soberano se imponha uma lei que não possa
violar.....por onde se vê
que não há nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental
obrigatória para o Corpo do Povo, nem mesmo o Contrato Social.” (p.27). É neste sentido
que o Povo é Soberano.
Observe-se que aqui estaremos diante de uma formulação
eminentemente ambígua, se se
entende Soberano como o segmento social e politicamente
hegemônico.
E como era ou é o Estado
de Natureza? Das proposições básicas
até aqui
comentadas, faltou fazer
algumas explicitações sobre esse conceito, que em Rousseau,
de
modo contrário a Hobbes, não
se traduz por um contexto de guerra interminável de todos
contra todos e de cada um
contra cada um. O estado de natureza se caracterizaria por um
contexto social de
inocência, portanto de amoralidade, potencialmente idílico ou trágico.
Não há noção de propriedade,
mas de uma posse contingente, em comunhão inclusive com
os animais; quando os homens
se defrontam com interesses diferentes, matam e morrem,
mas não há noção de guerra,
uma relação que, segundo Rousseau – parece
que falando
diretamente para os ‘Bushes’
da vida – só pode existir de Estado para Estado, sempre
vinculando bens reais, de
valor patrimonial, jamais valores pessoais
.
Vivendo no estado de
natureza sob a determinação dos fatores ambientais, é de se
imaginar nesses núcleos
humanos a manifestação das forças espirituais da Espécie: – o
Bom Selvagem num Éden de
fartura, quadro que, à ocorrência de um desequilíbrio
qualquer, transfigurar-se-á
em desgraças, privações, lutas de matar e morrer. “A passagem
do estado de natureza ao estado civil produz no homem mudanças
consideráveis,
substituindo em sua
conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que
até então lhe faltava. É
somente então que, a voz do dever sucedendo à impulsão física e o
direito ao apetite, o
homem que até esse momento não tinha olhado senão para si mesmo,
vê-se obrigado a agir
segundo outros princípios, e a consultar sua razão antes de ouvir
suas inclinações. Embora
ele se prive, neste estado, de várias vantagens que tinha no
estado de natureza, ele
ganha outras vantagens maiores, suas faculdades se exercitam e se
desenvolvem, suas idéias
se estendem, seus sentimentos se enobrecem, sua alma toda
inteira se eleva a tal
ponto que, se os abusos desta nova condição não o degradassem
muitas vezes em níveis
abaixo da condição de que ele acaba de sair, o homem devia
bendizer sem cessar o
instante feliz que de lá o arrancou para sempre, e que, de um animal
estúpido e limitado, fez um ser inteligente e um homem”. (p. 29).
Como funcionaria o modelo? Como
encontrar a vontade da Nação e como expressá-
la? Com os limites de tempo
e espaço inerentes a texto dessa natureza, vamos por partes.
A generalidade da Lei
Com o Pacto confere-se existência ao Corpo Político; com a lei dá-se-lhe
movimento, expressando-se
sua vontade, uma vez que “o ato primitivo pelo qual este corpo
se forma e se une, nada
determina quanto ao que deve fazer para se manter” (p.42). Nesse
4
“A guerra
não é de modo nenhum uma relação de homem a homem, mas uma relação de Estado
para
Estado, na
qual os particulares não são inimigos senão acidentalmente, de modo nenhum como
homens nem
mesmo como
cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como seus
defensores. Enfim,
um Estado
não pode ter como inimigos senão outros Estados, de modo nenhum homens,
entendido que entre
coisas de
diversas naturezas não se pode fixar um nexo verdadeiro”. Idem, p. 21.
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sistema, a questão da generalidade da lei é pedra angular: “Já disse não
haver vontade
geral sobre um objeto particular. Efetivamente, este objeto particular está
dentro do
Estado ou fora do Estado. Se está fora, uma vontade que lhe é exterior não
é geral em
relação a ele mesmo; e se este objeto está dentro do Estado, dele faz
parte: então se forma
entre o todo e sua parte uma relação que dele faz dois corpos separados, um
sendo a
parte, e o outro, o todo
menos essa parte. Mas o todo menos uma parte não é mais o todo
e, pelo quanto essa
relação subsista, não há mais o todo e sim duas partes desiguais: de
onde se segue que a
vontade de uma não é igualmente geral relativamente a outra” (p.43).
A matéria sobre a qual se
legisla é geral como a vontade que a estatui. “É a este ato
que chamo de uma lei”. A lei
considera (tanto) os sujeitos incorporados (quanto) as ações,
como abstratos. “Assim a lei
pode estatuir que haverá privilégios, mas ela não os pode
conceder nominalmente a uma
pessoa; a lei pode fazer várias Classes de Cidadãos, atribuir
mesmo as qualidades que
darão direito a essas Classes, mas ela não pode nomear tais ou
quais para nelas serem
admitidos...em uma palavra, toda função que se reporte a um objeto
individual não pertence à
potência legislativa” (p.43). Em coerência com
essa definição,
será uma Re(s)pública todo
Estado regido pela lei como aqui entendida, pois nele só o
interesse público governa, e
coisa pública é tudo, é toda e qualquer coisa (p.44).
Como espécies de leis,
fontes do direito, Rousseau nomeia quatro: a)
as leis
políticas, que regulam as relações do todo com o todo, ou de outro modo,
do “Soberano
para com o Estado”; b)
aquelas que regulam as relações dos particulares entre si e com o
Estado, de onde nascem as
leis civis; c) as leis criminais, ou seja, as que sancionam todas as
demais, d) e por último, as
normas de moralidade, os costumes, a opinião pública.
Cumpre, porém, distinguir,
no modelo, Lei de Atos de Magistratura. Se esse
coletivo que se forma a
partir de doação unitária, um a um, no ato de votar o faz
unitariamente, as
delta-diferenças então se somam e se anulam, como resultado surgindo a
Lei. Mas se no ato de votar
o coletivo se divide em partidos, associações etc., as diferenças
então surgem a partir de
números de grande magnitude, não mais se podendo falar em Lei,
em Vontade Geral, mas em determinação particular, em Decreto, em Ato de
Magistratura.
O Legislador e o Representante
Ente de natureza moral,
nascido da total e absoluta doação de todos, a Vontade
Geral ou o Soberano só conhece, diante do devir, uma direção: a do
bem-estar geral, a da
igualdade. Nos quadros da
realidade, porém, a marcha em direção ao devir requer a
elaboração de mapas, requer
batedores, requer até motivos para o caminhar. Além dessas
ausências, contam-se outras
limitações à Vontade Geral. “Quer-se sempre o bem-estar, mas
nem sempre esse bem-estar é
visto. Se por um lado o povo jamais é corrompido, na maioria
das vezes é enganado, quando
então parece querer o mal” (p.35).
Fora as imposições da
própria realidade social, no modelo há questões inerentes a
sua coerência interna. Já
vimos que para Rousseau a soberania não pode
alienar-se nem
dividir-se, só podendo ser
representada por si mesma. Nesse quadro, como ficaria a
questão da representação?
Como organizar, como ouvir a Vontade Geral?
Rousseau não nos resolve esses problemas. Na elaboração de
mapas e de rotas ao
devir de um povo, ele
encarece a necessidade do Legislador, o Iluminado, a ter como
parâmetros Licurgo, Sólon,
Moisés e outros heróis de mesma envergadura. A
generalizadamente aceita solução da Representação, ele a deriva, como
coisa espúria, de
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indignas práticas feudais
.De modo diferente da visão
atual, em que os deputados, ao
receberem o mandato dizem
falar em nome da ‘Nação’, mesmo que tenham como
patronos grupos
multinacionais, para Rousseau eles não são
senão comissários, nada
podendo concluir
definitivamente. “Toute loi que le Peuple en personne n’a pas ratifiée est
nulle; ce n’est pas point
une loi” (p.80)
As ambigüidades de seu
pensamento podem explicar a solução hoje vigente em
quase todo mundo, segundo a qual, na formação do Estado-nação,
anular-se-iam de modo
absoluto (exceção feita para
os segmentos excluídos) todas as diferenças entre os membros
de uma formação social –
nascimento, posses, dons naturais, nível cultural etc. – dando-se
aos incluídos o status de cidadão, um santo leigo
, que mesmo sem ter
participado de pacto
nenhum, é depositário da soberania nacional. A vontade, o querer desse “Soberano” se
defere a representantes,
geralmente eleitos por sufrágio universal, cuja função antes que de
representar, é a de falar e
agir em nome da ‘nação’. Apontam-se entre as fraquezas do
modelo: a) vacuidade do
conceito ‘cidadão’ quando oposto aos homens reais, suporte de
marcadas diferenças de
natureza sociológica; b) paradoxo da representação, a qual se
arroga o poder de falar em
nome da nação, mas é estipendiada por grupos empresariais,
geralmente multinacionais, a
cujos interesses serve; d) a força conjuntural dos grupos extra-
constitucionais que atuam no vazio do conceito cidadão, retirando da
esfera governamental
o poder do Estado.
.
A constitucionalidade das
leis das cotas para negros
No cinzelamento do arcabouço de nossa específica formação nacional, aqui
e ali as
ditas elites brasileiras
tomam, de Rousseau, esse ou aquele aspecto
formal, como é o caso
do preâmbulo das nossas
recentes constituições que, em função até das deficiências do
instituto da representação,
não são nem jamais pretenderam ser o Pacto. No caso do Brasil,
seria mais apropriado dizer
que as elites, sem qualquer espécie de pejo, tomam por
parâmetro ninguém mais que
Karl Marx, para quem a função do Estado é promover a
organização social, política
e econômica de uma classe às expensas das demais. E uma vez
que no Brasil as classes,
quando polarizadas, têm cor, vê-se formada a base para a
constituição do grande
contencioso nacional representado pela constitucionalidade da lei
das cotas.
Para grande número de
advogados, vez por outra deslastrados em função das nossas
constantes entradas nos
desvios ou porões da ilegalidade institucional, mas sempre míopes
em relação às nossas
deformações de nascença, essas peças legislativas são
4
“Tão logo
que o serviço público deixa de ser o principal negócio dos Cidadãos, tão logo
eles preferem
dispor de
suas bolsas antes que de suas pessoas, o Estado está perto de sua ruína. É
preciso ir à guerra?, eles
pagam uma
tropa e ficam em casa; É preciso ir ao Conselho?, eles nomeiam deputados e
ficam em casa. À
força da
preguiça e do dinheiro, eles enfim dispõem de soldados para sobrepor-se à
pátria e de representantes
para
vendê-la” . Idem, p.79.
5
“É o homem
esclarecido pela razão, desembaraçados dos preconceitos de classe e das
preocupações
inerentes à
sua condição econômica, capaz de formular uma opinião sobre a coisa pública,
abstraindo das suas
preferências
pessoais, em suma uma espécie de santo laico ao qual se concede a qualidade de
membro do
soberano
precisamente porque o seu desinteresse é penhor do uso prudente que fará da sua
soberania....” Cf.
Georges
Burdeau, A democracia, Publicações Europa-América, Lisboa, s.d. p.20.
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Jean-Jacques
Rousseau e as leis das cotas para negros nas
universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro
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inconstitucionais, já que
ferem de pronto o princípio da generalidade das leis. Fazem tal
afirmação amparando-se
principalmente nos ensinamentos de Rousseau,
por um lado
esquecendo que não
constituímos o modelo de nação por ele prefigurado; por outro,
fazendo vistas grossas às
centenas de leis particulares (o que devia ser um contra-senso)
que têm abrigo no direito
positivo brasileiro: privilégios para descendentes de nossa
discutível nobreza, até
pouco tempo “bibelôs mensais de milhares de reais para filhas de
oficiais das forças armadas,
das polícias, em muitos Estados para as esposas de juízes,
desembargadores etc.,etc. No
lado puramente econômico, perdão de dívidas, de juros, ou
incentivos fiscais não só a
esse ou àquele segmento, mas a essa e àquela empresa ou
pessoa. Que nada seja falado
sobre as leis específicas que concedem privilégios a membros
da ex-família reinante, nem
das inovações da atual constituição com relação à múltipla
nacionalidade.
E que não se fale também das
cotas que sempre existiram privilegiando os brancos,
dado o fato de que aqui a
pobreza é levada a ter cor. Também não falemos em certos
estamentos dessa ou daquela
corporação militar cujos altos escalões eram ainda nos anos
90 categoricamente vedados aos negros. Não se fale na magistratura. Não se fale no setor
acadêmico de modo geral, em carreiras como medicina, desenho industrial,
comunicação.
Mas fale-se, e fale-se muito
em pedagogia, serviço social, letras...Apresentado aqui como
elementos para que brancos e
negros nos conheçamos melhor, reflita-se sobre o fato de que
as elites norte-americanas,
até mesmo para alardearem que são ‘ungidas pela graça divina’,
jamais matriculariam os
filhos numa universidade pública. Aqui, pessoas de posses vão a
restaurantes populares,
tomam de assaltos os colégios de aplicação públicos, assenhoreiam-
se dos cursos universitários
cujos diplomas conferem status, sem que jamais se vejam tais
fatos como uma lei de cotas
às avessas.
Lembre-se que fora do modelo
rousseauniano, carece de amparo ético, portanto
político, a referência ao
princípio da generalidade das leis no que tange às leis das cotas.
Imperfeitas quanto possam
estar, já que são dois diplomas, de propósito sancionados para
que um inviabilizasse o
outro, eles nos sinalizam quanto às imperfeições do nosso
‘acochambramento’ social, na
medida em que no contexto da violência urbana e rural, no
contexto da fome, do desemprego, da ressurgência da escravidão, no
contexto do
multimilionário negócio da droga, um iceberg em que em certas
cidades apenas a cabeça é
negra, enfim, no contexto da
discriminação racial, do genocídio étnico e cultural, essas leis
nos convidam à releitura de Do
contrato social para que vejamos quão perdidos estamos,
não nos descaminhos do
Estado de Natureza, mas no da Barbárie. É chato ser brasileiro
assim.