Rousseau e a Teoria
da Autogestão Social
O
pensamento de Rousseau é alvo de inúmeras polêmicas e interpretações
diferentes e até antagônicas. Um pensador que
é considerado liberal ou democrata radical por alguns, é também
considerado um precursor do fascismo por outros e até mesmo
um precursor da teoria da autogestão social, segundo outros
intérpretes. Iremos, no presente texto, discutir brevemente
a relação entre o pensamento de Rousseau e a teoria da autogestão
social.
Rousseau
é um pensador do século 18, sendo, portanto, anterior às
experiências autogestionárias da sociedade moderna e das
teorias da autogestão social, desde as embrionárias presentes
no socialismo utópico, passando pelo anarquismo e marxismo
(o marxismo original de Marx e seus desdobramentos revolucionários
expressos no comunismo de conselhos de Korsch e Pannekoek,
entre outros) e as concepções mais recentes. Assim, dificilmente
se poderia pensar em Rousseau como um pensador autogestionário.
No entanto, existem elementos em sua obra que poderiam ser
interpretados como sendo uma espécie de concepção autogestionária. É isto
que permite alguns pesquisadores entenderem ser possível
uma “leitura autogestionária”
de Rousseau.
“(...)
Parece que uma ‘leitura autogestionária’ de Rousseau seja
possível e útil. Com efeito, no Contrato Social, Rousseau
levanta o problema capital do fundamento de uma organização
social que instaure uma ordem sem, no entanto, criar uma
fissura de classe entre uma minoria dirigente e a ‘massa’ dos
dirigidos; pois, na sua teoria do contrato, ‘cada um dando-se
a todos não se dá a ninguém, e como não há um associado
sobre o qual não se possa adquirir o mesmo direito que
se cede a si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo o que
se perde, e mais força para conservar o que se tem’. Em
conseqüência, compreende-se que uma organização social
que não aliena (nem submete nem humilha) homem algum, só pode
repousar no princípio da igualdade absoluta de todos os
membros que a compõem, e, mais ainda, sobre a liberdade
inteira de cada um. Tal organização, percebida por todos
como necessária a cada um, não tem necessidade de ser imposta
de fora por quem quer que seja: Deus, rei, sábio legislador
ou genial paizinho dos povos. Ela resulta, como dirá
Kant, da autonomia dos sujeitos, essa liberdade constitutiva
do ser do homem que, por essência, não pode jamais obedecer
a ninguém, sequer a Deus – se ele existe, como supõe Kant.
Cada um, determinando-se livremente por adesão ao que compreende
ser o melhor para si mesmo, encontra todos os outros sujeitos
racionais para ajustar livremente a instituição do mesmo
contrato que realiza a vontade geral. Assim, todos os membros
do corpo social se dão a si mesmos (criam contratualmente)
uma lei geral (e isso será a autonomia) que os organiza sem
gerar entre eles diferenças de poder, num sistema federal
cuja ‘circunferência está em toda parte, o centro em parte
alguma’” (Guillerm e Bourdet, 1976, p. 52).
Estes
autores acrescentam que a teoria do contrato social de
Rousseau deve ser interpretada como uma “axiomática” que “propõe
o fundamento inteligível da sociedade dos iguais”. Rousseau
também busca analisar o problema da expressão da vontade
geral (tendo em vista que a teoria da vontade geral não
apresenta imediatamente a questão de como concretamente
ocorre a sua expressão, isto é, a manifestação da vontade
geral) considerando o governo simultaneamente necessário
e perigoso – necessário para a administração e garantia
das liberdades e perigoso por possuir a tendência de usurpar
o poder do soberano em proveito próprio –
buscando analisar a passagem dos princípios para a existência
concreta.
Sem
dúvida, o pensamento de Rousseau apresenta uma visão que
podemos denominar “democrata radical”, isto é, que vai
além da visão do liberalismo, mas que não ultrapassa o
universo burguês de pensamento. Assim, se em sua concepção
se pode perceber uma defesa da “democracia participante” (Carvalho,
1983) ou uma busca de “liberdade igualitária” (Della Volpe,
1982), mas que ainda não é autogestão social e possui bases
burguesas, a propriedade privada individual. A liberdade
e igualdade que Rousseau defende é a civil – jurídica-política,
ou seja, mantendo a esfera da propriedade individual, das
classes sociais (Viana, 2005). Assim, o individualismo
abstrato de Rousseau (Della Volpe, 1982), e sua incapacidade
de negar totalmente a propriedade ou a figura da pequena
propriedade, acaba criando uma auto-limitação em seu pensamento,
que não pode ser considerado autogestionário.
No
entanto, o fato de Rousseau não ser autogestionário não
deve servir de pretexto para desconhecer sua contribuição
para uma teoria da autogestão social. As razões da produção
intelectual de Rousseau só podem ser compreendidas através
de toda uma análise do seu processo histórico de vida no
contexto sócio-histórico no qual ele viveu, o que não pretendemos
realizar aqui.
O
que queremos ressaltar é que a relação entre Rousseau e
a teoria da autogestão social é bastante complexa e que
deve ser analisada historicamente. Rousseau não é um precursor
da teoria da autogestão social, pois sua concepção não
apontava para a transformação social, elemento inseparável
de tal teoria. É
claro que aqui não se pensa a autogestão social como mera
“gestão operária” de empresas ou “democracia direta”. Autogestão
social significa o autogoverno coletivo e generalizado em
uma sociedade, o que pressupõe a ruptura com o Estado e o
mercado, elementos antitéticos à autogestão social. Por conseguinte,
a dinâmica da autogestão social é uma nova sociedade, com
relações de produção e formas de regularização radicalmente
diferentes das existentes na sociedade capitalista. No capitalismo,
a produção de mais-valor é o seu elemento fundante e no comunismo, é a
autogestão social (Bernardo, 1975).
O
pensamento de Rousseau é uma expressão ideológica da visão
burguesa de mundo, embora com um certo radicalismo que
o colocava a frente de outros ideólogos da burguesia de
sua época, os representantes do iluminismo. E é justamente
este radicalismo que coloca a existência de uma relação
entre Rousseau com a teoria da autogestão social, que não é uma
relação de precursor, pois sua perspectiva era outra, já que
o proletariado ainda não havia se desenvolvido o suficiente
para ter sua expressão teórica ou política mais desenvolvida.
Rousseau se relaciona com a teoria da autogestão social
ao colocar – e não resolver, pois serão outros que irão
resolver o problema colocado por ele adequadamente – o
problema da propriedade privada, cuja solução reside não
no nivelamento da propriedade e sim em sua abolição, tal
como Marx, Proudhon, entre outros, propuseram posteriormente
– e na preocupação com a vontade geral e a soberania do povo.
A
questão da vontade geral foi ressaltada por Guillerm e
Bourdet (1976), embora a abordagem rousseauniana seja metafísica
e que toma as vontades particulares apenas como diferentes,
sem perceber que na sociedade capitalista, elas são antagônicas
e que por isso somente uma ruptura revolucionária que destrua
as bases desta sociedade é que poderia proporcionar um
interesse coletivo não antagônico. A questão da soberania
está intimamente ligada
à questão da vontade geral, mas também não tem solução no
pensamento de Rousseau, pois o soberano convive com o governo
e este, tal como o próprio Rousseau reconhece, possui a tendência
de monopolizar o poder, embora não seja uma questão de tendência
e sim de essência: o governo governa... Assim, a abolição
do governo e das bases da sociedade capitalista (relações
de produção capitalistas) não são propostas por Rousseau
e por isso ele não defende a formação de uma sociedade autogerida.
Porém, ele coloca problemas fundamentais sem resolvê-los:
o da propriedade privada – principalmente em seu Discurso
Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens (1989) – e o da soberania ou, em termos mais adequados
e atuais, o da decisão coletiva, tal como se vê em O Contrato
Social (2001).
Assim,
Rousseau colocou problemas que só poderiam ser respondidos
adequadamente no futuro, em um contexto histórico no qual
o proletariado fosse uma força política poderosa e esboçasse
suas tentativas de revolução, o que faria surgir sua expressão
teórica, o marxismo, bem como o anarquismo. Assim, Rousseau
não é um precursor da teoria da autogestão social por simplesmente
não ter apontado para a sua possibilidade efetiva, mas
apenas apresentado alguns elementos abstratos que possuem
alguma semelhança com elementos da autogestão social. A
sua grande contribuição foi ter colocado determinados problemas
que não pôde responder devido às limitações de sua consciência
burguesa e que os pensadores socialistas posteriores, ao
conseguirem se desvencilhar de tais limites por expressarem
a perspectiva de outra classe social – o proletariado,
conseguiram materializar uma resposta proletária e inaugurar
a teoria da autogestão social. Porém, o mérito de colocar
os problemas e ser um ponto de partida para reflexões que
buscam respondê-los, faz de Rousseau um dos maiores pensadores
do século 18 e um pensador político que contribuiu com
uma problematização que seria o ponto de partida para a
teoria da autogestão social, uma superação do pensamento
rousseauniano. A ruptura com o pensamento de Rousseau é um
passo necessário para a criação de uma verdadeira teoria
da autogestão social e ele não possuía uma consciência
antecipadora que não tinha as bases sociais para existir
naquele momento e por isso a relação de Rousseau com a
teoria da autogestão social não é a de um antecessor ou
precursor e sim o de um obstáculo que deve ser ultrapassado,
o que não lhe retira o mérito da problematização que realizou
e foi desenvolvida num sentido proletário e revolucionário
pelos teóricos da autogestão social. A teoria da autogestão
social conservou a problematização de Rousseau mas não
suas respostas abstratas e que não ultrapassaram os limites
da sociedade burguesa.