Marques, J. O. A. – Ecos de Rousseau em “Das fremde Kind” de E. T. A. Hoffmann
Ecos de Rousseau em “Das fremde Kind”
de E. T. A. Hoffmann
José Oscar de Almeida Marques
Abstract: Besides Rousseau’s general influence in the aesthetic ideals of Romanticism, the
more direct links between him and the great German romantic E. T. A. Hoffmann are
worthy of a detailed study. Such a study should compare not only works, but also lives,
since there are remarkable biographical parallels between the two authors. In this paper I
limit myself to examine one text of Hoffmann’s, the fairy tale “Das fremde Kind”, trying to
show that Rousseau’s echoes in that work go much deeper than the superficial and worn
out “good savage’s” cliché.
Keywords: Romanticism; Nature; autobiography; education.
Resumo : Para além da influência geral de Rousseau na constituição do ideário estético do
Romantismo, as relações mais diretas que o ligam ao grande romântico alemão E. T. A.
Hoffmann são merecedoras de um estudo detalhado. Um tal estudo deveria confrontar não
só as obras, mas as próprias vidas, já que são notáveis os paralelos biográficos entre os dois
autores. Neste trabalho limito-me a examinar um único texto de Hoffmann, o conto de
fadas “Das fremde Kind”, buscando mostrar que os ecos rousseaunianos nessa obra são
bem mais profundos do que uma mera re-elaboração do desgastado e superficial clichê do
“bom selvagem”.
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Palavras-Chave : Romantismo; Natureza; autobiografia; educação.
Zusammenfassung: Außer Rousseaus allgemeinem Einfluss auf die ästhetischen Ideale
der Romantik, wären die direkteren Verbindungen zwischen ihm und dem großen
deutschen Romantiker E. T. A. Hoffmann einer ausführlichen Auseinandersetzung würdig.
Diese sollte nicht nur die Werke vergleichen, sondern auch die Lebenswege, da beide
Autoren außerordentlich viel gemeinsam haben, was ihre Biographie betrifft. In dieser
Arbeit beschränke ich mich aber darauf, nur ein einziges Werk, nämlich Hoffmanns
Märchen „Das fremde Kind“, zu untersuchen. Mein Ziel ist es zu zeigen, dass der
Widerhall von Rousseaus Ideen in diesem Märchen stärker ist als lediglich eine
Wiederholung der abgenutzten und oberflächlichen Klischees des bon sauvage.
Stichwörter: Romantik; Natur; Autobiographie; Ausbildung.
Professor Doutor do Departamento de Filosofia, IFCH-UNICAMP. jmarques@unicamp.br
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Marques, J. O. A. – Ecos de Rousseau em “Das fremde Kind” de E. T. A. Hoffmann
Mais do que por suas idéias filosóficas, políticas ou pedagógicas, a
influência de Jean-Jacques Rousseau no surgimento do romantismo se deu,
antes, pela descoberta ou invenção de um novo tipo de sensibilidade ,
fundadora do ideário estético e emocional que seria abraçado pelos
românticos: o culto de uma Natureza pura e originária, a rejeição do
artificialismo e das convenções, a primazia da experiência subjetiva, o valor da
expressão autêntica e espontânea, a busca das raízes da vida pessoal e social, e
o desconforto diante do progresso técnico alienante e desumanizador.
Como muitos de seus contemporâneos, o grande escritor romântico
alemão E. T. A. Hoffmann compartilha, naturalmente, desse ideário. Em seu
caso, contudo, além dessa influência geral de Rousseau, manifesta-se uma
relação mais profunda, derivada das notáveis coincidências de ordem
biográfica e de interesses artísticos entre os dois autores. 1 Tais coincidências
foram desde cedo percebidas por Hoffmann, e foram elas certamente que o
motivaram, quando jovem, a ler apaixonadamente as Confissões de Rousseau:
“Ich lese Rousseaus ‘Bekenntnisse’ vielleicht zum dreißigsten Mal – ich finde
mich ihm in manchem ähnlich – Auch mir verwirren sich die Gedanken wenn
es darauf ankommt, Gefühle in Worte zu fassen!” 2
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Indicações dessa influência mais direta de Rousseau sobre Hoffmann
podem ser encontradas principalmente em duas obras: o conto de fadas “Das
fremde Kind” (“A criança estrangeira”), que discute a questão da educação
infantil em termos próximos aos do Emílio , e o romance inacabado
Lebensansichten des Katers Murr ( Vida e opiniões do gato Murr ), fantástica paródia do
gênero autobiográfico, no qual, ao lado dos modelos já bem reconhecidos na
literatura (Sterne, Goethe), o papel das próprias Confissões de Rousseau ainda
carece de maior exame. De fato, se as Confissões de Rousseau inauguram a
forma moderna do gênero autobiográfico, é plausível dizer que, no Kater Murr ,
esse gênero alcança sua maturidade literária, pela vasta assimilação de
elementos das produções intermediárias, pela mescla sutil e paradoxal de
paródia e autenticidade, e pela original forma artística pela qual duas
autobiografias são justapostas pelo recurso poético de supor que Murr, o gato
1 O mais importante estudo biográfico de Rousseau está em C RANSTON 1983, 1991, 1997. Para a biografia de
Hoffmann, veja-se S AFRANSKI 1987 e K LEßMANN 1995.
2 Diário, 13 de fevereiro de 1804, citado por W ITTKOP -MÉ NARDEAU 1966: 41. As referências bibliográficas
completas das obras citadas nas notas de rodapé estão dadas ao final do trabalho. “Estou lendo as Confissões
de Rousseau talvez pela trigésima vez – acho que me pareço com ele em muitas coisas – Também fico com
os pensamentos confusos quando tenho de pôr sentimentos em palavras”. Todas as citações foram traduzidas
por mim
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letrado, escreveu seu relato em folhas arrancadas de uma suposta biografia do
Kapellmeister Johannes Kreisler, ele próprio um alter ego de Hoffmann. A
perspectiva comparativa torna-se ainda mais atraente pelo fato de os dois
biografados, Murr e Kreisler, se referirem explicitamente a passagens das
Confissões de Rousseau; e são inúmeros os elementos que se poderia pôr em
evidência na exploração dessas relações. Neste trabalho, entretanto, vou
dedicar-me apenas a uma análise da primeira obra mencionada – o conto de
fadas “Das fremde Kind” –, ressaltando a presença e o tratamento de temas
nitidamente rousseaunianos nessa obra.
“Das Fremde Kind”
Hoffmann escreveu dois contos de fadas para crianças, ambos
dedicados aos filhos de seu amigo Julius Hitzig. O primeiro, “Nußknacker
und Mausekönig”(“O Quebra-Nozes e o Rei dos Ratos”), que se tornou
muito popular na adaptação para o balé de Tchaikovsky de 1892, foi
publicado em 1816, na coletânea de contos Kinder-Märchen , que também reunia
contribuições de Fouqué e Contessa. Para um segundo volume das Kinder-
Märchen , Hoffmann preparou, no ano seguinte, “Das fremde Kind” (“A
criança estrangeira”), em parte para responder à crítica de que seu primeiro
conto destinava-se mais a adultos que a crianças.
101
Essa crítica foi, de fato, admitida pelo próprio Hoffmann. Republicados
em 1819 na coleção Die Serapions Brüder 3 , os dois contos são ambos narrados
pelo personagem Lothar, que, ao final de cada um, recebe dos demais
contadores de histórias a admoestação de que crianças não poderiam entendê-
los, embora reconheçam que o segundo conto é um pouco mais bem sucedido
sob esse aspecto 4 .
De fato, comparada à luxuriante e fantástica atmosfera do Quebra-nozes ,
a narrativa da criança estrangeira é bem mais simples e contida, e pretende
transmitir um genuíno ensinamento moral. Esse é, também, o conto de
Hoffmann que mais pode ser relacionado às idéias de Rousseau; uma relação
que, para alguns críticos, é vista com censura e como diminuindo, em certa
medida, o valor literário do texto.
3 H OFFMANN 1976. Todas as minhas citações do conto de Hoffmann serão referidas às páginas desta edição
(Winkler Verlag).
4 H OFFMANN 1976: 252-55, 510-11.
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Assim, Hans von Müller declara que as duas crianças do campo, Felix e
Christlieb, principais personagens do conto, são “ entsetzlich gut, so edel wie nur ein
Rousseau’scher Naturmensch ” (“terrivelmente boas, tão nobres como só um
homem natural de Rousseau”) 5 . As supostas bondade e nobreza do homem
natural de Rousseau são visivelmente ridicularizadas, e Hoffmann é
implicitamente criticado por levar a sério tais idéias. Marianne Thalmann
segue a mesma linha:
Da ist kein Zweifel mehr, diese Märchen kommen aus den überwärmten Bürgerstuben
und aus der Natur der Sonntagsspaziergängen. Und nichts liegt Hoffmann ferner als das
Geheimnis des Kindseins (…) Die Landkinder bleiben eine dick aufgetragene Unschuld
und die Stadtkinder eine bissige Karrikatur. Das eine wie das andere ist ein Rousseau-
Klischee, das nicht von Kindsein überzeugt. 6
Numa análise mais perspicaz e informada, que traz à luz os grandes
méritos do conto, Brigitte Feldges (FELDGES & STADLER 1986: 90-98)
reconhece que “Das fremde Kind” está de fato impregnado das idéias que
Rousseau desenvolveu no Emílio e que influenciaram os pedagogos que, na
Alemanha, prepararam as extensas reformas pedagógicas do final do século
XVIII. Mas seria, a seu ver, uma simplificação indevida considerar o conto
apenas como uma encenação do conflito entre as novas concepções
educacionais e a educação tradicional segundo o modelo das cortes,
representadas cada uma delas, de maneira caricata, pelas crianças do campo e
seus primos da cidade. Indo mais além, entretanto, penso que se pode aplicar
à análise desse conto de Hoffmann importantes elementos do pensamento de
Rousseau, que não se limitam à polêmica sobre a educação e, muito menos,
aos clichês tão difundidos quanto falsos sobre sua concepção do homem
natural.
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5 “ terrivelmente boas, tão nobres como só um homem natural de Rousseau” Gesammelte Aufsätze über E.T.A.
Hoffmann , apud F ELDGES & S TADLER 1986: 90.
6 “Não resta mais nenhuma dúvida de que esses contos de fada têm sua origem em uma bem aquecida sala
burguesa, e na natureza apreciada nos passeios dominicais. Nada está mais distante de Hoffmann que o
mistério da vida infantil (…) As crianças do campo preservam uma grossa carapaça de inocência, e as crianças
da cidade surgem como uma mordaz caricatura. Tanto umas como outras são um clichê rousseauniano, que
não nos convence enquanto manifestação da existência infantil.”
T HALMANN 1961: 88.
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A história
Antes de desenvolver esses pontos, é preciso apresentar rapidamente o
enredo de “Das fremde Kind”. O Sr. Thaddäus von Brakel vive com sua
mulher e dois filhos na pequena aldeia de Brakelheim, que foi toda a herança
que recebeu de seu pai. De temperamento simples e bonachão, veste-se como
os camponeses de sua propriedade e mora em uma casa modesta embora
confortável. Seus filhos, Felix e Christlieb, levam uma vida livre e
despreocupada, e estão sempre a brincar nos campos e bosques ao redor da
aldeia. Apenas aos domingos Herr von Brakel e a família vestem suas roupas
mais vistosas e assistem a missa na cidade próxima.
Um dia o Sr. von Brakel recebe a visita de um primo, o conde
Cyprianus von Brakel, acompanhado da esposa e de seus dois filhos,
Hermann e Adelgunde. O conde tem uma alta posição na corte, e seus filhos
vestem roupas pomposas que causam espanto em Felix e Christlieb. O primo
Hermann porta até mesmo um pequeno sabre! O contato entre as crianças
não flui amigavelmente, e as coisas pioram quando Hermann e Adelgunde
fazem uma exibição de conhecimentos respondendo às mais variadas
perguntas feitas pelos pais sobre países distantes, estranhos animais, fatos
históricos e constelações no céu. Impressionada com a habilidade das
crianças, a mulher do Sr. von Brakel lamenta que seus próprios filhos não
tenham tão boa educação, ao que os visitantes se prontificam a enviar
gratuitamente da cidade um preceptor para ensiná-los. As visitas se despedem
e partem deixando uma caixa cheia de finos doces e brinquedos.
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Felix e Christlieb divertem-se com os novos brinquedos, mas depois
sentem falta das brincadeiras na floresta. Decidem então sair, mas levam
consigo os brinquedos. No ambiente da floresta estes não fazem tanto efeito,
e acabam por quebrar-se e ser abandonados. As crianças entristecem-se com
sua inépcia, e não conseguem entreter-se com as brincadeiras de costume.
Nesse instante surge a Criança Estrangeira, que as faz de novo se divertirem.
O encontro se repete nos dias seguintes, e, assediada pela curiosidade de Felix
e Christlieb, a Criança Estrangeira lhes revela que vive em um reino mágico,
que está ameaçado por um terrível gnomo chamado Pepser
A chegada do novo preceptor, o desagradável Magister Tinte, cujas
pernas finas e nariz alongado fazem-no parecer uma mosca, põe um fim aos
encontros com a Criança Estrangeira e às brincadeiras ao ar livre. Felix e
Christlieb devem agora permanecer dentro de casa, presos aos estudos. Um
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dia, porém, Magister Tinte decide ir com as crianças ao campo e, em uma série
de dramáticos acontecimentos, ficamos sabendo que o preceptor não é
ninguém menos que o próprio gnomo maligno Pepser disfarçado. Na forma
de uma mosca gigante, ele persegue as crianças, que fogem para casa, mas
acaba dominado e expulso da aldeia pelo Sr. von Brakel.
Depois disso Felix e Christlieb não foram mais visitados pela Criança
Estrangeira. O próprio bosque torna-se assombrado pelos brinquedos que lá
haviam sido abandonados. O Sr. von Brakel adoece e morre, e suas grandes
dívidas com o primo Cyprianus fazem a família perder a propriedade. Felix e
Christlieb partem de Brakelheim em situação de penúria, com a mãe doente,
para buscarem abrigo em casa de parentes. No caminho, ao atravessar a
floresta, esta se enche de luz e a Criança Estrangeira aparece-lhes pela última
vez, com uma promessa de conforto e esperança. Eles são bem recebidos na
casa dos parentes da mãe, e têm, daí em diante, uma vida cheia de felicidade.
Os elementos
Reduzida a seu mero esqueleto, e mesmo na graciosa adaptação infantil
de Anthea Bell,( BELL 1984) a história perde o que tem de mais importante,
que é a inebriante prosa de Hoffmann, a riqueza de detalhes e de insights
psicológicos, a evocação de uma atmosfera bucólica que também pode se
transformar em aterradora, e a grotesca justaposição de elementos díspares,
como os brinquedos quebrados que ressurgem como seres maléficos ou o
monstruoso Magister Tinte espatifando-se dentro de um prato de leite. De
toda essa variedade de elementos, analiso aqui apenas os que têm uma relação
mais direta com alguns tópicos que Rousseau desenvolveu em suas obras.
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O Emílio é certamente a referência fundamental, e seus dois primeiros
livros enfatizam a importância de permitir à criança a liberdade de
movimentos e o exercício físico constante, o que exige roupas que não tolham
os movimentos, e a vida ao ar livre na maior parte do tempo. A cena em que
Felix e Christlieb aguardam a chegada do tio Cyprianus é bastante reveladora.
Sentadas comportadamente na sala de casa, com suas roupas domingueiras, as
crianças sentem-se desconfortáveis e impacientes, e lançam compridos olhares
para o campo fora de casa, onde gostariam de estar a brincar. Toda a visita
constitui para eles uma verdadeira tortura, da qual emergem com alívio. E
mesmo o Sr. von Brakel, assim que os visitantes partiram,
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warf (…) schnell den grünen Rock und die rote Weste ab, und als er ebenso schnell die
weite Tuchjacke angezogen und zwei- bis dreimal mit dem breiten Kamm die Haare
durchfahren hatte, da holte er tief Atem, dehnte sich und rief: „Gott sei gedankt! (p.
480). 7
A brilhante demonstração de conhecimentos por parte dos primos toca
em outro importante aspecto das recomendações pedagógicas de Rousseau,
descrita no Livro III do Emílio : a regra da utilidade deve ser inflexível – a
criança não deve aprender nada a menos que saiba para que serve esse
aprendizado e esteja convencida de sua utilidade. Para ensinar a Emílio a
utilidade do conhecimento da posição do Sol e dos pontos cardeais, o
preceptor Jean-Jacques finge perder-se com ele na floresta de Montmorency, e
é a angústia da fome crescente que desperta em Emílio as reflexões que o
levam a deduzir, da posição do Sol, a direção em que devem caminhar. O
estudo das ciências não se faz jamais com livros, mas sempre na presença da
própria Natureza, e, de fato, Emílio não saberá o que é um livro até os doze
anos de idade. No conto de Hoffmann, toda a sabedoria livresca sobre os
mais diversos animais não evita, afinal, que o primo Hermann entre em pânico
diante do inofensivo e amigável cão Sultão 8 , fato que Felix simplesmente não
consegue compreender: “er tut dir ja nichts, warum heulst und schreist du so?
es ist ja nur ein Hund, und du hast ja schon die schrecklichsten Tiere gesehen?
Und wenn er auch auf dich zufahren wollte, du hast ja einen Säbel?” (p. 479) 9 .
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Entre as passagens mais bem construídas do conto estão as que
descrevem os brinquedos ganhos de presente pelas crianças: seu
funcionamento, o fascínio que despertam, a posterior decepção com suas
limitações, sua quebra, abandono, e o arrependimento pela perda. Enquanto
artefatos de sofisticada construção, eles revelam o poder do mundo da técnica
e das relações sociais pressupostos em sua fabricação, e o poder do dinheiro
necessário para comprá-los. Eles são como a serpente no Paraíso, e, em
termos rousseaunianos, a fantasia pela qual o progresso técnico se apodera da
imaginação dos homens e termina por escravizá-los, ao torná-los dependentes
de coisas de que de fato não precisam e que, posteriormente, lamentarão
perder. 10
7 “arrancou rapidamente a casaca verde e o colete vermelho e, após vestir com a mesma rapidez o confortável
casaco de pano e passar duas ou três vezes um pente largo pelos cabelos, respirou fundo, espreguiçou-se e
exclamou: ‘Graças a Deus!’ ”
8 Coincidentemente, Rousseau, como relata nas Confissões , também teve um cão chamado Sultan.
9 “ele não vai fazer-te mal, por que estás chorando e gritando dessa maneira? é só um cão, e já não viste os
animais mais terríveis? E se quisesse atacar-te, não tens um sabre?”
10 Este tema é desenvolvido por Rousseau especialmente na segunda parte do Discurso sobre a desigualdade .
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Os brinquedos inicialmente conquistam as crianças. Os de Felix são em
maior número: um caçador que aponta a arma e dispara em um alvo a três
palmos de distância ao puxar-se uma fitinha em suas costas, um homenzinho
que faz cumprimentos e toca harpa ao se acionar uma manivela, e uma
espingarda e um facão, ambos de madeira pintada de prateado. Christlieb
ganhou uma bela boneca, com roupas e apetrechos.
No primeiro dia eles passam todo o tempo dentro de casa, entretidos
com os brinquedos. No dia seguinte resolvem ir ao bosque, mas levam os
brinquedos consigo. Mas, no ambiente da floresta, em meio ao canto dos
pássaros e o rumor do riacho, o pequeno harpista quase não é audível, e, ao
dar-lhe mais corda para fazê-lo tocar mais alto, Felix acaba por quebrá-lo. O
fato de o atirador só atirar no alvo que tem à frente entedia Felix, mas a
remoção do alvo faz com que o mecanismo pare de funcionar. O harpista e o
caçador são atirados ao mato e os irmãos resolvem distrair-se dando uma
corrida, cada qual segurando um dos braços da boneca, a qual chega ao
destino rota e desmembrada, e é por sua vez atirada ao açude. Ao ver os patos
a alçar vôo, Felix pensa em caçá-los, mas percebe que sua espingarda não
pode atirar de verdade, nem o facão é capaz de cortar.
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Kann ich denn auch wohl Pulver in eine hölzerne Flinte laden? – Wozu ist überhaupt
das dumme hölzerne Ding? – Und der Hirschfänger? – Auch von Holz! – der schneidet
und sticht nicht – des Vetters Säbel war gewiß auch von Holz, deshalb mochte er ihn
nicht ausziehn als er sich vor dem Sultan fürchtete. Ich merke schon, Vetter Pumphose
hat mich nur zum besten gehabt mit seinen Spielsachen die was vorstellen wollen und
nichtsnutziges Zeug sind. (p. 483-4) 11
Esta oposição entre realidade e aparência, entre o que é e o que apenas
parece ser, remete a outro tópico fundamental da filosofia de Rousseau, que
está na base de sua crítica geral ao simulacro e à representação. Durante sua
educação, Emílio será mantido cuidadosamente à distância de tudo que
meramente representa sem realmente ser, e seu contato sempre será com as
próprias coisas e não com substitutos que falseiem sua apreensão da realidade.
Brinquedos como estes são enganosos – o caçador mecânico atira apenas em
um alvo: atividade indigna de um caçador; a boneca não consegue brincar e
correr como uma verdadeira companheira de folguedos, e, no caso mais
11 “Quem pode colocar pólvora em uma espingarda de madeira? – Para que serve afinal este pedaço bobo de
pau? – E o facão? – Também de madeira! – não corta nem espeta – com certeza o sabre do primo também
era de madeira, por isso ele não pôde sacá-lo quando ficou com medo do Sultão. Já vejo que o Primo
Bombachas me fez de tolo com seus brinquedos que parecem ser alguma coisa mas são só trastes inúteis.”
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exemplar das armas de madeira, toda aparência se esgota na mera superfície
pintada.
O ponto mais profundamente rousseauniano de todo o conto,
entretanto, está ligado à consciência de um olhar que nos mede e avalia por
um padrão que não é inicialmente o nosso, mas que acabamos por introjetar e
aplicar a nossa própria auto-avaliação. Rousseau descreve esse processo como
a formação do amor-próprio , considerado como uma paixão artificial
característica do homem civilizado.
Chacun commença à regarder les autres et à vouloir être regardé soi-même, et l’estime
publique eut un prix. Celui qui chantait ou dansait le mieux, le plus beau, le plus fort, le
plus adroit, le plus éloquent, devint le plus considéré; et ce fut là le premier pas vers
l’inégalité, et vers le vice en même temps. De ces premières préférences naquirent d’un côté
la vanité et le mépris, de l’autre, la honte et l’envie; et la fermentation causée par ces
nouveaux levains produisit enfin des composés funestes au bonheur et à l’innocence. 12
A experiência que afetou mais profundamente Felix e Christlieb foi a
descoberta desse olhar julgador, e das (supostas) falhas que ele neles
identificava. Se há alguma semelhança entre Felix, Christlieb e o homem
natural de Rousseau, é apenas a abençoada ignorância em que todos eles se
encontram inicialmente desse olhar perscrutador. A primeira reação das
crianças é tentar revoltar-se contra um padrão que lhes parece
incompreensível. Durante a sabatina de conhecimentos inúteis dos primos,
Felix recorre à mãe:
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Dem Felix wurde dabei ganz angst und bange, er näherte sich der Frau von Brakel und
fragte leise ins Ohr: ‘Ach Mama! liebe Mama! was ist denn das alles was die dort
schwatzen und plappern’ ‘Halts Maul dummer Junge’, raunte ihm die Mutter zu, ‘das
sind die Wissenschaften!’ Felix verstummte. (p. 478) 13
O recurso foi, pois, inútil. Na ocasião, os pais parecem aderir
plenamente ao novo padrão de avaliação: “ ‘Das ist erstaunlich, das ist
unerhört! in dem zarten Alter!’ so rief der Herr von Brakel ein Mal über das
andere, die Frau von Brakel aber seufzete: ‚O mein Herr Jemine! o was sind
12 “Cada qual começa a observar os outros e a querer ser ele próprio observado, e a estima pública teve um
custo. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais ágil, o mais eloqüente, torna-
se o mais considerado; e esse foi o primeiro passo em direção à desigualdade e em direção ao vício ao mesmo
tempo. Dessas primeiras preferências nasceram de um lado a vaidade e o desprezo, de outro, a vergonha e a
inveja; e a fermentação causada por essas novas leveduras produziu por fim compostos funestos à bondade e
à inocência.” R OUSSEAU 1969-1995 : III, 169-170.
13 “Felix, muito ansioso e assustado, aproximou-se da Sra. von Brakel e perguntou-lhe baixinho ao ouvido
‘Oh, mamãe, querida mamãe, que é que esses dois aí tanto tagarelam e papagueiam?’ ‘Cala a boca, menino
bobo’ esbravejou a mãe, ‘isso aí é ciência!’ Felix emudeceu.”
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das für Engel! o was soll denn aus unsern Kleinen werden, hier auf dem öden
Lande? „ (p. 478-9) 14
Uma nova ocasião de comparação ocorre quando Felix conta à mãe
sobre a perda dos brinquedos:
Christlieb war doch betrübt über den Verlust der Puppe, und auch Felix konnte sich des
Unmuts nicht erwehren. So schlichen sie nach Hause, und als die Mutter frug: „Kinder
wo habt ihr eure Spielsachen“, erzählte Felix ganz treuherzig, wie schlimm er mit dem
Jäger, mit dem Harfenmännlein, mit Flinte, Hirschfänger und Patrontasche, wie schlimm
Christlieb mit der Puppe angeführt worden. „Ach“, rief die Frau von Brakel halb
erzürnt, „ihr einfältigen Kinder, ihr wißt nur nicht mit den schönen zierlichen Sachen
umzugehen. (p. 484) 15
Por fim, as próprias crianças se convencem de sua inferioridade:
Da saßen die Kinder nun voller Unmut und starrten stumm in den Boden hinein.
„Ach“, seufzete Christlieb endlich leise, „ach hätten wir doch noch die schönen
Spielsachen!“ – „Die würden“, murrte Felix, „die würden uns gar nichts nützen, wir
müßten sie doch nur wieder zerbrechen und verderben. Höre Christlieb! – die Mutter hat
doch wohl recht – die Spielsachen waren gut, aber wir wußten nur nicht damit
umzugehen, und das kommt daher weil uns die Wissenschaften fehlen.“ „Ach lieber
Felix“, rief Christlieb, „du hast recht, könnten wir die Wissenschaften so hübsch
auswendig, wie der blanke Vetter und die geputzte Muhme, ach da hättest du noch
deinen Jäger, dein Harfenmännlein, da läg meine schöne Puppe nicht im Ententeich! –
wir ungeschickten Dinger – ach wir haben keine Wissenschaften!“ und damit fing
Christlieb an jämmerlich zu schluchzen und zu weinen und Felix stimmte mit ein und
beide Kinder heulten und jammerten daß es im Walde widertönte: „Wir armen Kinder
wir haben keine Wissenschaften! (p. 485) 16
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Embora, no melhor espírito de Hoffmann, uma irresistível comicidade
permeie sua descrição da situação, há um clímax dramático real na insegurança
e autocomiseração das crianças, e é aqui que a Criança Estrangeira aparece
14 “É uma coisa espantosa, nunca vista! e numa idade tão tenra!” exclamava sem parar o Sr. von Brakel, mas a
Sra. von Brakel soluçava: ‘Oh meu Jesus! que anjos são esses? ah, que será de nossos pequenos aqui neste
ermo?”
15 “Christlieb estava abatida com a perda da boneca, e Felix também não conseguia afastar a tristeza.
Chegaram assim sorrateiramente à casa, e quando a mãe perguntou: “Crianças, onde estão seus brinquedos?”
Felix contou com toda a sinceridade tudo que tinha sucedido ao caçador, o tocador de harpa, a espingarda, o
facão e a bolsa de munição, e também à boneca de Christlieb. “Ah”, exclamou a Sra. von Brakel, meio
zangada, “crianças desleixadas, que não sabem lidar com essas coisas graciosas.”
16 “Lá ficaram sentadas as crianças, cheias de tristeza, caladas, de olhos fixos no chão. Por fim Christlieb
soluçou baixinho “Ah, se ainda tivéssemos nossos belos brinquedos!” – “Eles não nos serviriam de nada”,
resmungou Felix, “só iríamos quebrá-los e estragá-los de novo. Olha, Christlieb! – mamãe tinha toda razão –
os brinquedos eram bons, só que não soubemos lidar com eles, porque não sabemos nada de ciência.”
“Querido Felix”, exclamou Christlieb, “tens toda razão, se soubéssemos ciência de cor tão bem como nossos
primos bem-arrumadinhos, então ainda terias teu caçador e teu tocador de harpa, e minha boneca não estaria
lá no açude dos patos! – ah, como somos desajeitados – não sabemos nada de ciência!” e com isso Christlieb
começou a chorar e a soluçar, e Felix lhe fez coro, e por todo o bosque ecoava: “oh, como somos infelizes,
não sabemos nada de ciência!”
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Marques, J. O. A. – Ecos de Rousseau em “Das fremde Kind” de E. T. A. Hoffmann
pela primeira vez aos irmãos. Ela brinca com eles, mostra-lhes como a
imaginação pode suprir os brinquedos quebrados, restabelece-lhes a
autoconfiança e a alegria de viver. A passagem é uma antecipação da cena
final, em que o aparecimento da misteriosa criança, em uma situação mais
desesperadora, restitui à família as energias espirituais necessárias para
prosseguir na jornada.
Na interpretação de James McGlathery, Das fremde Kind pode ser
entendida como uma representação da passagem da infância para uma vida de
responsabilidades ( MCGLATHERY 1997: 121-122). Penso que, mais que isso,
esse conto nos mostra como Hoffmann concebe uma possível redenção para
a vida humana. É claro que esta difere das possíveis redenções que Rousseau
concebeu no Emílio e nas Confissões – o século é outro, o homem é outro. Mas
os elos entre os autores existem, e espero ter brevemente mostrado que os
instrumentos de análise que as idéias de Rousseau colocam a nossa disposição
não se esgotam nos tolos e abusados clichês sobre o “nobre selvagem” e o
“homem natural”. 17
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109
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17 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no II Congresso Internacional da Associação
Portuguesa de Estudos Germanísticos, realizado na Universidade do Porto, Portugal, de 30 de janeiro a 1º de
fevereiro de 2003, e no Colóquio Nacional “Letras em Diálogo e em Contexto”: Rumos e Desafios, realizado
no Instituto de Letras da UFRGS, em Porto Alegre, de 9 a 13 de dezembro de 2002.
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