Gilda Naécia Maciel Barros
Educar é relativizar o eu humano; é um processo de
abertura para o outro.
Vários autores, no século XVIII, ocuparam-se da educação, em geral
animados por extraordinário otimismo pedagógico, grande fé no poder do
conhecimento, associada, por vezes, ao engrandecimento moral do indivíduo ou
dos povos.
Contudo, no quadro cultural da época, onde brilharam figuras notáveis
como Diderot, Voltaire, D’Alembert, D’Holbach, Helvetius, La Metrie, para citar
apenas alguns, associados à Ilustração francesa, Rousseau destaca-se como um
pensador à parte, que não apenas enfrenta os debates contemporâneos como, ainda
mais, torna-se, ele próprio, em certos momentos, o centro mesmo desses debates,
seja por seu comportamento, seja pela crítica instigante e original que
sustenta contra teses predominantes.
Recusando-se a tratar separadamente a política e a moral, e visando a
investigar os fatores que se interpõem entre o indivíduo e a sua felicidade, a
partir do postulado de que o homem, degradado em sua natureza pelo processo
histórico de socialização, pode, em princípio, recuperar sua integridade
essencial, Rousseau, mais do que desenvolver pensamentos sobre educação,
desenvolve uma teoria normativa do homem e da sociedade, coroada, na seu
inspiração, por um autêntico projeto de cidadania,para cuja compreensão O
Contrato Social e Da Economia Política oferecem
preciosos subsídios.[1]
Se o ponto de partida de seu raciocínio é a crença na boa natureza
do homem e o alvo a felicidade dele, o problema que se coloca é o de conservar
nessa natureza a sua qualidade originária e saber onde deve ser posta a
felicidade. Lembremo-nos de que esse objetivo - fazer o homem feliz - nada mais
é do que confirmar a sua integridade, de que nos dá conta o dogma rousseauniano
da bondade natural. Em termos mais amplos, isso implicaria em pensá-lo
integrado na “boa sociedade”, adequada para tal fim, não só pelas condições de
gênese e estrutura, dadas em O Contrato Social, como também de
funcionamento, apresentadas no Da Economia Política.
Consideremos a “boa sociedade”. Para compreender a sua legitimidade
devemos atentar para o seguinte. De um lado, é preciso referir o nascimento e a
organização do corpo político ao princípio da igualdade natural, a partir do
qual a sociedade justa deverá ser dirigida por leis diretamente votadas pelos
associados, por ato indelegável de vontade[2], que legitima
o pacto social. De outro, não se pode deixar de lado o problema subseqüente do
funcionamento dessa mesma sociedade, por conta de um poder - o governo, cujo
tarefa deve restringir-se sobretudo à execução daquela vontade geral.
O problema que nos interessa examinar aqui diz respeito ao status ôntico
do homem na teoria política de Rousseau, mais precisamente, à natureza e
limites da integração do indivíduo na sociedade, fundada, naqueles termos, pelo
pacto social.
Não é possível, ensina Rousseau, conservar em sociedade a mesma condição
do estado natural. A desnaturação gesta um novo homem, que passa a viver com
os outros e, nessa nova condição, sofrerá mudanças, virtualmente possíveis em
seu estado natural. Serão benéficas se favorecerem a conservação da integridade
de sua natureza. Na base dessas mudanças está a necessidade primária de criação
de um artifício, o espírito social, assentado sobre uma condição existencial
básica. Que condição é essa? Que idéia a traduz? É a condição de homem ao
mesmo tempo “integrado” (súdito) e “ integrante” (cidadão). A idéia que a
traduz? A de ser parte.
O que significa ser parte? O exame dessa idéia implica,
logicamente, a análise do processo em que se dá a socialização, nesta incluídas
a fundação da sociedade política e a convivência dos seres humanos que a
integram. Para garantir a legitimidade da vida social Rousseau cuida de
preservar dois valores fundamentais – a liberdade e a igualdade. E pensa ter
encontrado a fórmula para tanto estabelecendo, para o homem que se associa, uma
condição que, a seu ver, lhe daria um poder soberano, necessário
à salvaguarda daqueles valores.
Não desconhecemos a importância que tem nessa questão as divergências
entre os críticos acerca desse poder soberano, sua natureza e seus
limites, divergências essas que resultam em interpretações que aproximam
Rousseau quer da filosofia liberal quer da ideologia coletivista[3]. Por si
só, a teoria política de Rousseau é infrutífera para esclarecer essa
condição do homem-parte, mas, combinada com a sua teoria sobre a
educação, oferece preciosos subsídios nessa direção. Sem pretender um
tratamento sistemático do assunto, pretendemos oferecer elementos que
ponham esse vínculo em destaque. [4]
Mas, se restringimos o exame dessas idéias ao campo da teoria
constitucional e do direito público, nossa análise fica empobrecida; se o ampliamos,
para considerá-lo à luz da teoria formativa de Rousseau, ocorre precisamente o
contrário. Estamos convencidos de que Rousseau, embora um autor dos tempos
modernos, vai buscar inspiração nos valores da cidade antiga para fundamentar a
sua idéia de participação, o que pode ser melhor aclarado com a
discussão de seu ideal de Estado educador.
De fato, o exame das idéias de Rousseau acerca da educação, da moral e
da cultura não indica apenas uma vinculação espiritual com a civilização
grega e romana – isso já foi assinalado por vários autores[5]; mas há em seu
íntimo uma adesão substantiva a valores da cidade antiga, o que fortalece nossa
opinião da existência de um importante núcleo arcaico no pensamento de
Rousseau, que não pode ser escamoteado por aqueles que têm pressa em
aproximá-lo dos tempos modernos.
A importância desse núcleo é ressaltada quando fazemos a avaliação
da estreita relação entre os vículos da ética e da política em Rousseau. Pode
então perceber-se que em Rousseau a filosofia da educação e a filosofia
política vêm empre entrelaçadas, e é a partir desse ponto que ele se aproxima
da visão dos antigos quanto às relações do homem com a cidade. [6]
Essa questão da dependência de Rousseau relativamente aos antigos não é
de menor monta e, para bem compreendê-la, é preciso, antes, bem situá-la. Para
ilustrar isso vamos retomar aqui as observações de um dos mais brilhantes
críticos de Rousseau, B. Constant, aos olhos de quem o autor do Contrato
Social, com a melhor das intenções, afastou a estrada para a absorção do
indivíduo no seio do Estado.
O que teria levado Constant a semelhante conclusão? Em texto que se
tornará famoso, intitulado De la liberté des anciens comparée à celle des
modernes (1819), esse autor veio a distinguir dois tipos de liberdade,
conforme, precisamente, a modalidade de integração do homem no corpo coletivo.
E critica Rousseau, que, a seu ver, pleiteia para o homem moderno um
ideal de vida e liberdade mais adequado ao homem antigo. Leiamos o
próprio Constant:
“O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos
os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O
objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios; e e eles chamam liberdade
as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios.”[7]
Ao denunciar a falta de percepção de “homens bem intencionados”,
contemporâneos seus, aos quais essas diferenças passavam despercebidas, B.
Constant vai encontrar em obras de autores do passado – em Rousseau e em Mably
notadamente - , a fonte de inspiração dessa cegueira. De Rousseau
diz ele:
“Eu examinarei, pois, o sistema do mais ilustre desses filósofos, J.-J.
Rousseau, e mostrarei que, transportando para os tempos modernos um volume
de poder social, de soberania coletiva que pertencia a outros séculos,
esse gênio sublime, que era animado pelo mais puro amor à liberdade, forneceu,
todavia, desastrosos pretextos a mais de um tipo de tirania.”[8]
É verdade também que, na opinião de Constant, mais do que Rousseau, o
responsável por esse erro é o abade de Mably, que pode ser considerado como o
representante do sistema que, “conforme as máximas da liberdade antiga,
quer que os cidadãos sejam completamente dominados para que a nação seja
soberana, e que o indivíduo seja escravo para que o povo seja libre.” [9]
Explicitando essas críticas, observa Constant:
“O abade de Mably, como Rousseau, e como muitos outros, tinha,
conforme os antigos, tomado a autoridade do corpo social pela liberdade,
e todos os meios pareciam-lhe bons para estender a ação dessa autoridade sobre
a parte recalcitrante da existência humana, da qual ele deplorava a
independência. A queixa que ele expressa em todas as suas obras é que a lei
só possa atingir as ações. Ele teria desejado que ela atingisse os
pensamentos, as impressões mais passageiras, que ela perseguisse o homem sem
trégua e sem deixar-lhe nenhum refúgio onde pudesse escapar ao seu poder.” [10]
Antes de Constant, Mirabeau (1749-1791) já percebera essa diferença
entre antigos e modernos, e levanta dúvidas sobre os limites da ação do poder
público na vida do cidadão. Comparando uns e outros, destaca as diferenças,
lembrando o papel dos legisladores antigos, que se serviram da educação pública
para dar a seus povos uma feição própria, que sobrepunha ao homem o cidadão,
criando, por um certo tipo de desnaturação, hábitos contrários à nossas
disposições originais:
“Quanto a vós, senhores, não tendes opiniões prontas a espalhar; não
tendes qualquer objetivo particular a atingir; vosso objeto único é
proporcionar ao homem o uso de todas as suas faculdades, fazê-lo desfrutar de
todos os seus direitos, fazer nascer a existência pública de todas as
existências individuais livremente desenvolvidas e a vontade geral de todas as
vontades privadas. Não se trata de fazer os homens contrairem certos hábitos,
mas de deixá-los tomar todos aqueles para os quais a opinião pública ou gostos
inocentes os chamarão...
Assim, é, quem sabe, um problema saber se os legisladores franceses
devem ocupar-se da educação pública de outra forma que para proteger-lhe o
progresso e se a constituição mais provável ao desenvolvimento do eu humano e
as leis mais adequadas a por cada um em seu lugar não são a única educação que
o povo deve esperar deles.” [11]
E, como Constant o fará depois, Mirabeau rejeita a solução dos
antigos:
“A sociedade não existe senão pelos indivíduos: por conseguinte, não só
ela deve existir para eles e consagrar, se necessário, à defesa de cada um a
força de todos, mas deve, sobretudo, respeitar esta existência particular, a
única que decorre da natureza, a única cuja violação nenhum interesse pode
legitimar... Os povos nos quais o legislador tinha fundado em outros princípios
a duração da associação parecem, contrariamente a nós, não ter existido senão
por e para ela: a pátria não era apenas o centro da reunião dos cidadãos; era,
em certo sentido, a fonte de todo o seu ser, o único ponto
pelo qual sentiam e amavam a vida... Quanto a nós, tudo ocorre de outro
modo.” [12]
Cabe-nos agora perguntar até que ponto as teses de Rousseau acerca da
relação do homem com o corpo coletivo comportam, ainda que virtualmente, o
perigo a que se refere Constant. Ou, dito de outro modo, até que ponto Rousseau
está comprometido com a idéia de liberdade dos antigos.[13]
Vista a questão do ângulo da política, somos obrigados a examinar, à luz
da teoria de Rousseau acerca da soberania, em que termos se dá o compromisso
entre o indivíduo e o soberano, mais precisamente, de que forma aquele
participa do processo de desnaturação, alienando,em favor do corpo social, o
seu poder, os seus bens e a sua liberdade.
É preciso lembrar, com Derathé, que é o próprio Rousseau quem confia ao soberano
a tarefa de julgar os limites dessa alienação: “Há apenas a força do
Estado para fazer a liberdade de seus membros .”[14] De fato,
ao soberano Rousseau entrega a tarefa de impedir a ruptura ôntica
do homem, estabelecendo, como primeiro dever do legislador, a tarefa de
conformar as leis à vontade geral”[15].
Aqui, chegamos ao ponto chave da questão. Não basta que as leis sejam
retas. Porque de nada adiantaria escrever leis sem garantia de que serão
cumpridas; ora, essa obediência Rousseau espera alcançar aplicando o que ele
próprio denominou “segunda regra essencial da Economia Política”:
“.... se quereis que a vontade geral seja cumprida, fazei com que todas
as vontades particulares a ela se conformem. E, como a virtude não passa da
conformidade da vontade particular à geral, para dizer, numa palavra, a mesma
coisa: fazei reinar a virtude.” [16]
Mas persiste a necessidade de avaliar o quanto o homem, pelo pacto,
aliena de seu poder, bens e liiberdade.
Nesse processo de integração, a alienação que o indivíduo sofre
relativamente à sua vida, aos seus bens e à sua liberdade é sempre total, mas
está sujeita a duas condições: de um lado, ninguém pode, na ordem social, ser
preferido pelo soberano. A igualdade é fundamental; de outro, acima de tudo é o
interesse comum que deve estar em discussão; o que está fora desse
interesse, não pode ser alienado. E se o soberano o exigisse, desvirtuaria sua
própria essência. Isso quer dizer que, se a vontade do corpo político de
cidadãos é geral quanto ao objeto - visa sempre e tão só ao bem comum – não
pode tomar em consideração nenhum objeto particular, pois isto não configuraria
um ato de soberania. Rousseau o diz claramente no Contrato Social,
repetindo a mesma advertência no Da Economia Política.
Abre-se então a possibilidade de, na boa sociedade, coexistirem a figura do
“homem” e a do “cidadão”.
Parece, até, que o problema da liberdade se quantifica: fora dos limites
das convenções, pode o homem dispor de seus bens, de sua liberdade. A esfera
dos assuntos não pertinentes ao interesse comum é residual e é civil o
caráter da liberdade que lhe diz respeito. Se a vida e a liberdade da pessoa
enquanto ser particular não dependem da pessoa pública que ela integra, é
preciso distinguir o direito natural que indivíduo deve gozar na qualidade de
homem, agora não mais de cidadão ou súdito.
A pergunta que se põe, então, é a seguinte: como irão conviver na mesma
pessoa o homem e o cidadão? Alguns julgam que à figura do primeiro se sobrepõe
a do segundo; outros, não.
Teria Rousseau percebido o quanto, na sociedade legítima, aproximam-se o
homem e o cidadão? A nosso ver, sim, tendo, inclusive, percebido o quanto, na
sociedade de seu tempo, um e outro estavam separados, e, muitas
vezes, em relação de conflito.
É notável que também não lhe escapou, antes de Constant, a distinção
entre a liberdade dos antigos e a dos modernos. Deixemos de lado as instigantes
considerações que afloram o tema no Emílio e prestemos atenção às
palavras com que Rousseau distingue antigos de modernos em Carta os cidadãos de
Genebra, datada de 1764:
“Os povos antigos não são mais um modelo para os modernos; sob todos os
aspectos eles lhes são muito estranhos. Sobretudo vós, genebrinos, ficai em
vosso lugar, não ides aos objetos elevados que se vos apresentam para vos
esconder o abismo que se cava diante de vós. Vós não sois romanos, nem
espartanos, nem mesmo sois atenienses. Abandonai esses grandes nomes
que não vos cabem. Vós sois mercadores, artistas, burgueses, sempre ocupados
com vossos interesses particulares, com vosso trabalho, vosso comércio, vosso
ganho, pessoas para as quais a própria liberdade é apenas um meio de adquirir
sem obstáculo e possuir em segurança.”[17]
Rousseau tem consciência das diferenças entre as sociedades antigas e as
modernas, seja quanto ao funcionamento da democracia antiga, seja quanto aos
hábitos de vida. Sabe que falta no seu tempo o ócio, que a cidade antiga
garantia ao cidadão explorando o trabalho escravo, razão pela qual chama a
atenção para a importância dos mecanismos de controle adequados ao sistema
representativo, uma vez que o envolvimento excessivo do indivíduo com seus
interesses particulares afasta-o da participação direta e contínua na vida
pública. Assim, adiantando-se a Constant, sublinhando esse
desinteresse, Rousseau chama a atenção para o fato de que a participação
política é que nos garante a liberdade civil. Aos genebrinos que, em sua
opinião, só se ocupavam dos seus direitos políticos tardiamente, com
repugnância e somente diante do premente perigo, Rousseau aconselha:
“Esta situação exige para vós máximas específicas. Não sendo ociosos
como eram os antigos povos, vós não podeis, como eles, ocupar-vos sem cessar do
governo; mas justamente pelo fato de que vós quase não podeis vigiar
constantemente o governo, deve ele ser instituído de modo que vos seja
mais fácil ver as suas manobras e prevenir os abusos. Todos os cuidados que,
por exigência de vossos próprios interesses, deveis ter na ordem pública, devem
ser tornados tanto mais fáceis de tomar quanto um cuidado que vos custe e que
não tomeis de bom grado. Porque querer desonerar-se inteiramente é querer
cessar de ser livre. É preciso optar, diz o filósofo benfazejo, e os que não
podem suportar o trabalho só têm de procurar o repouso na servidão. Um povo
inquieto, desocupado, agitado e carente de negócios particulares, sempre pronto
a imiscuir-se nos negócios do Estado, tem necessidade de ser contido, eu o sei;
mas, novamente, é a burguesia de Genebra esse povo? Nada assemelha-se menos a
isso; ela é o antípoda dele. Vós cidadãos, inteiramente absorvidos em vossas
ocupações particulares e sempre indiferentes diante do resto, só cuidais do
interesse público quando o vosso é atacado. Muito pouco cuidadosos em
esclarecer a conduta de seus chefes, não vêem os ferros que se lhes prepara a
não ser quando sentem o peso deles. Sempre distraídos, sempre enganados, sempre
atentos a outros objetos, deixam-se enganar acerca do mais importante de todos,
e vão sempre procurando o remédio, por falta de ter sabido prevenir o mal. De
tanto calcular os seus passos, não os dão nunca senão demasiado tarde. Seus
vagares os teriam já perdido cem vezes se a impaciência do magistrado não os
tivesse salvo e se, apressado em exercer esse poder supremo ao qual ele aspira,
ele próprio não os tivesse advertido do perigo. Segui a história de
vosso governo, vós vereis sempre o Conselho, ardente em seus empreendimentos,
fracassar muitas vezes por muito zelo em realizá-los, e vereis sempre a
burguesia retornar enfim sobre o que ela deixou que se fizesse sem a isso
opor-se. Em 1570 ...., em 1714 ...., em 1725 ...., em 1650 ..., em 1707 ..., em
1736 ..., em 1762 ..., em 1763 ......[18]. Eis,
senhores, fatos conhecidos em vossa cidade, e mais conhecidos por vós do que
por mim; eu poderia acrescentar cem outros, sem contar os que me escaparam.
Estes bastariam para julgar se a burguesia de Genebra alguma vez foi ou é, eu
não digo agitada e sediciosa, mas vigilante, atenta e ágil na defesa de seus
direitos melhor estabelecidos e mais abertamente atacados. (...)”[19]
Deixando de lado a discutível questão acerca de se saber até que
ponto, pessoalmente comprometido com os conselhos que dá aos genebrinos
na 9a. Carta, Rousseau teria mudado de opinião quanto à
orientação assumida no Contrato Social relativamente ao sistema
representativo, pode perceber-se que ele tem a clara consciência da diferença
entre antigos e modernos na questão da liberdade. Então, que posição
tomou?
Em nossa avaliação, repetimos, somente à luz da filosofia da educação de
Rousseau, espalhada em algumas obras, concentrada em outras, mas sempre
associada a uma teoria da cultura, é que podemos aclarar a sua idéia de
liberdade e o seu ideal de cidadania.
Examinemos tudo mais de perto. No Contrato Social,
distinguindo a tarefa de redigir as leis do direito de as votar,
exercido este diretamente pelo povo em assembléia, em condições de igualdade
radical, reserva Rousseau aquela para uma figura ímpar, o Legislador. A seu
ver, a elaboração das leis deve obedecer a uma inspiração única, que tudo faça
concorrer para a realização do espírito social. Essa, a dificuldade primária,
a que o próprio Rousseau já fora sensível. Como levar a cabo essa tarefa se o
instituidor supõe existir no povo precisamente aquilo que elas (as leis) devem
concorrer para estabelecer - o espírito social? A segunda dificuldade está na
gestação do homem novo, na desnaturação. Estabelecer o espírito social implica
sempre em desnaturar. Essa tarefa – desnaturar –
exige do Legislador de um povo uma intervenção radical.:
“.... ... mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo,
que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do
qual de certo modo esse indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar
constituição do homem para fortificá-la; substituir a existência física e
independente que todos nós recebemos da natureza, por uma existência parcial e
moral.” [20]
Ora, o que o exame das idéias políticas e educacionais de Rousseau
indica é simplesmente isso: desnaturar é uma tarefa que Rousseau não irá
conceber na sociedade legítima sem o concurso do poder público e da
educação Eis aqui o ponto em que sobressai a face política da educação.
Como devemos entender isso? Considerado em si próprio, o homem é um ser
natural, completo; em sua relação com os outros, deixa essa condição para
tornar-se um ser social, que se completa apenas à medida que se compõe com os
outros homens, na qualidade, agora, de parte de um todo que o ultrapassa, a
sociedade política, numa vida artificialmente organizada. Ser parte de
um todo - eis a nova condição do homem desnaturado.
Mas como esclarecer o sentido mesmo de ser parte?. Vejamos,
primeiro, como Rousseau vê a condição do homem cuja desnaturação
fracassou. Há uma passagem no Segundo Discurso que ilustra bem o
fato:
“... a sociedade não oferece mais aos olhos do sábio senão um conjunto
de homens artificiais e de paixões factícias que são obra de todas essas novas
relações e que não têm fundamento verdadeiro da natureza (...) o homem selvagem
e o homem policiado diferem de tal forma quanto ao fundo do coração e às
inclinações que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao
desespero ...” [21]
No livro I do Emílio esse ponto é enfaticamente problematizado. Para
Rousseau, o homem da sociedade de seu tempo, mal socializado, é um híbrido
teratológico. Nem é homem e nem é cidadão. Ficou a meio do caminho, na
passsagem para a ordem social. Onde foi que essa operação falhou e por que?
Não é possível, diz Rousseau, ao homem manter na vida em sociedade a
unidade de seu ser e, ao mesmo tempo, pretender conservar na ordem civil a
primazia dos sentimentos da natureza:
“Aquele que, na ordem civil, quer conservar a primazia dos sentimentos
da natureza, não sabe o que ele quer. Sempre em contradição consigo próprio,
hesitando sempre entre suas inclinações e seus deveres, ele não será, jamais,
nem homem, nem cidadão; não será bom nem para si nem para os outros. Será um
desses homens de nossos dias; um francês, um inglês, um burguês; ele não será
nada.”[22]
Portanto, em algum momento da transição do estado natural para o
estado social deu-se um desastre ôntico. O sentimento de piedade, de que
o homem naturalmente é dotado, é que permite a boa socialização. Ora, no
processo de transposição de um estado para outro, esse sentimento,
desenvolvendo-se sempre de preferência ao outro sentimento básico do homem
natural, que é o amor de si, deveria, em sociedade, mudando de sinal,
configurar o que, no plano moral, chamamos virtude e, no plano social, justiça.[23] Pelos
resultados da transição tal não se deu. Ao invés de ser fortalecido, esse
sentimento foi atrofiado. Que fatores favoreceram esse fracasso?
Parte desse fracasso se deve à própria estrutura da sociedade, que é
injusta e desigual; parte deve ser tributada às falhas da educação.
Quando esta favorece o florecimento, no homem, de paixões contrárias à
natureza, tudo está perdido:
“Não há mais tempo para mudar nossas inclinações naturais quando
elas tomaram seus cursos e quando o hábito associou-se ao amor próprio;
não há mais tempo para nos tirar fora de nós mesmos, desde que o eu humano,
concentrado nos nosssos corações, adquiriu aí esta desprezível atividade que
absorve toda virtude e faz a vida de almas pequenas.”[24]
Como alcançar que na sociedade ilegítima convivam harmonicamente na
mesma pessoa o homem e o cidadão, sem que haja a ruptura? O grande
problema é preservar a unidade do ser. Teria Rousseau encontrado a fórmula para
tal sonho? [25]
Nessa sociedade ilegítima, estando a ruptura infiltrada na
própria ordem civil, injusta e desigual, a unidade deve ser constituída e
também reforçada na intimidade de cada um. O preceptor formará o homem
habilitado a adaptar-se às leis civis do País que escolher como pátria;
cidadão do mundo, contudo, guiar-se-á, em última análise, pelas leis escritas
em seu coração. A correspondência entre a moralidade que deve regular a vida
interior do indivíduo e a legalidade que tutela o cidadão será tanto mais imperfeita
quanto imperfeitas forem as leis da pátria onde se vive. [26]
O problema da contradição interior dentro do homem aflora quando, sob a
tutela da educação particular, que Rousseau intitula doméstica, a
socialização mal feita favorece o movimento centrípeto do eu, contra as
exigências do corpo político, que sempre deveria estimular no indivíduo a
abertura para o todo. O caminho para a desagregação social está mais próximo
tanto mais quanto na vida associativa cada um mover-se em torno de si próprio,
nada restará quando, então, de útil, para entretecer o liame social. Se a
união social nasce do acaso, justifca-se e se mantém devido aos
interesses comuns.
Nas sociedades degeneradas a educação fica por conta de iniciativas
isoladas, referidas à vida privada; nelas a responsabilidade do educador
é total e mal pode ser dividida com a sociedade, já que esta, mal constituída,
é, em si, um obstáculo.
Para transformar o homem natural em homem civil sem degradá-lo, Rousseau
conta com as boas instituições e confia ao poder da educação a disciplina
das paixões, que não pretende eliminar, pois sabe que o homem, este ser
dual, pela parte corpórea está sujeito a elas:
“Mas que ser sensível pode viver sempre sem paixões, sem ligações? Ele
não é um homem; é um bruto ou é um Deus. Não podendo, pois, me garantir de
todas as afecções que nos ligam às coisas, vós me ensinastes ao menos a
escolhê-las, a não abrir minha alma senão às mais nobres, a não me prender
senão aos mais dignos objetos que são meus semelhantes, a estender, por assim
dizer, o eu humano a toda a humanidade, e a me preservar, assim, das vis
paixões que o concentram.”[27]
Consequentemente, para a sociedade legítima, Rousseau prescreve a
educação pública, e a transforma em uma paidéia de deveres.[28] Esta
vai estabelecer, primeiramente pelos costumes, depois pelas leis, uma
tábua de valores acerca do que é permitido ou proibido. As paixões não serão
eliminadas, mas, sim, controladas em sua gênese[29] e
direcionadas para o espírito social:
“Dir-me-ão que quem tiver homens para governar não deve procurar fora da
sua natureza uma perfeição de que não são capazes, não deve desejar neles
destruir as paixões e que a execução de um tal projeto seria tão indesejável
quanto impossível. Conviria com tudo isso, sobretudo porque um homem que não
tivesse nenhuma paixão seria certamente péssimo cidadão. Mas é preciso também
convir em que, se não se ensina os homens a nada amar, também não é impossível
ensiná-los a amarem um certo objeto em lugar de outro e o que é verdadeiramente
belo em lugar do que é disforme.” [30]
A boa ordem e a boa educação é que vão permitir esse transporte do
eu (humano) para a unidade comum de modo a tornar relativo (parte) o que era
absoluto (todo), com existência definida em função do corpo coletivo:
“O homem natural é tudo para si mesmo: ele é a unidade numérica, o
inteiro absoluto que só tem relação com ele próprio ou com seu semelhante. O
homem civil é apenas uma unidade fracionária que depende do denominador cujo
valor está em sua relação com o inteiro, que é o corpo social. As boas
instituições são aquelas que melhor sabem desnaturar o homem, tirar-lhe sua
existência absoluta para lhe dar uma relativa, e transportar o eu para a
unidade comum: de tal modo que cada particular não se creia mais um, mas parte
da unidade, e apenas seja sensível no todo.” [31]
Dir-se-á que não é possível socializar sem “relativizar”o eu
humano; todavia, o problema está na forma de se conceber essa “relativização”: [32] o nível e a
intensidade da entrega do eu ao nós, do indivíduo, ao todo. De qualquer forma,
a vontade particular, preponderante na ordem natural, é agora enfraquecida, em
favor da vontade geral, que é soberana.
Mas Rousseau julga que, para o êxito desse procedimento é preciso algo
mais do que leis escritas; é preciso gestar no indivíduo o espírito
social e, com ele, um sentimento único: o de ser parte. Ser
social, então, vai ser mais do que fazer parte ou tomar parte: será não algo
passageiro, mas um estado de alma permanente, pelo qual o cidadão mostra
não apenas conhecer o que é o bem, mas também amá-lo:
“Se, por exemplo, desde bem cedo forem acostumados a só considerarem sua
individualidade pelas suas relações com o corpo do Estado e a só perceber,
por assim dizer, sua própria existência como uma parte da existência dessa
corpo, poderão, por fim, identificar-se de certo modo com esse todo maior,
sentirem-se membros da pátria, amá-la com esse sentimento especial que todo o
homem isolado só tem por si mesmo, elevar perpetuamente sua alma a esse grande
objetivo e transformar, assim, numa virtude sublime, essa disposição perigosa [amor
de si] da qual nascem todos os nossos vícios [amor próprio].”[33]
Nesse novo contexto cada associado exerce dois papéis, como homem e como
cidadão. Mas o mesmo indivíduo que faz a lei no exercíciio da cidadania,
cumpre-a na qualidade de súdito. pois foi ele próprio que a estabeleceu.
Respeitada a correlação direitos-deveres, constituindo-se um liame social
sólido, está garantida a presevação do corpo politico e a liberdade civil de
cada um. O pressuposto dessa solidez é a subordinação do interesse particular
ao interesse público, alcançada em primeiro lugar por meio da formação de
costumes sadios.
A partir daqui, leis passam a controlar as opiniões, a regular o
julgamento sobre o que é belo e o que deve ser entendido como tal.
“A essas três espécies de leis, junta-se uma quarta, a mais
importante de todas, que não se grava nem no mármore, nem no bronze, mas nos
corações dos cidadãos; que faz a verdadeira constituição do estado; que todos
os dias ganha novas forças; que, quando as outras leis envelhecem ou se
extinguem, as reanima ou as supre, conserva um povo no espírito de sua
instituição e insensivelmente substitui a força da autoridade pela do hábito.
Refiro-me aos usos e costumes e, sobretudo, à opinião, essa
parcela desconhecida por nossos políticos, mas da qual depende o sucesso de
todas as outras: parte de que se ocupa em segredo o grande Legislador, enquanto
parece limitar-se a regulamentos particulares que não são senão o arco da
abóbada, da qual os costumes, mais lentos para nascerem, formam por fim a chave
indestrutível.”(CS., ed. cit., p. 55-6)
É no âmago desse argumento que se deve entender a crítica de Rousseau à
cultura. Esta é bem vinda quando não enfraquece o liame social, favorecendo o
interesse pessoal e a gestação de paixões ilegítimas - vaidade,
hipocrisia, ambição etc. Pois aos olhos de Rousseau, enquanto a ignorância, por
si só, não pode impedir a virtude ou afastar o vício, a história
mostra que as ciências, as artes, a filosofia se fazem acompanhar sempre de
decadência. [34]
A partir daqui desvela-se com força total o
compromisso da teoria formativa de Rousseau com a sua teoria política e a
natureza desse compromisso. Porquanto, 14 para constituir e manter esse liame
Rousseau reclama, na sociedade legítima, algo mais do que a mera adesão
às leis. Rousseau reclama uma autêntica conversão interior, que qualifica
aquele sentimento de ser parte. À verdadeira ordem social
corresponde a ordem no interior do homem. A melhor adesão à disciplina da lei
comum é espontânea. Mas para chegar a essa espontaneidade é preciso formar
no homem o cidadão, 16 tarefa do Estado e da educação, que,
como dissemos, na sociedade legítima, deve ser pública. O pai que educa o filho
fala em nome da natureza; o Estado que forma o cidadão, em nome da lei comum. E
essa ênfase na adesão espontânea à lei pelo controle da vontade,
constituida em sua substância pela educação, indica a matriz ética da política
de Rousseau.
Ordem política, ordem social, ordem moral. Tudo sustentado, na sociedade
legítima, pela harmônica coordenação entre o “eu” e o “nós”, numa
comunhão espiritual plena. Nela, a rainha é a virtude:
“Por que arte inconcebível se pôde encontrar o meio de submeter os
homens para torná-los livres; empregar no serviço do Estado os bens, os braços
e a própria vida de todos os seus membros, sem obrigá-los e sem consultá-los; com
o seu próprio consentimento, aprisionar a sua vontade; fazer
valer seu consentimento contra a sua recusa, e forçá-los a punirem-se a
si próprios quando fazem o que não desejaram? Como pode acontecer que obedeçam
e que ninguém mande, que sirvam e não tenham senhor; sendo tanto mais livres,
com efeito, quanto, sob uma sujeição aparente, ninguém perde de sua liberdade a
não ser aquilo que pode prejudicar a outrem? Esses prodígios são obra da lei.”
[35]
Agora, então, vê-se claramente que toda a concepção de Rousseau
acerca da liberdade está assentada em sua teoria da lei, que, nas últimas
consequências, sobreleva o campo jurídico, para alcançar o campo da moral. O
elogio da lei diz tudo:
“É somente à lei que os homens devem a justiça e a
liberdade; é esse órgão salutar da vontade de todos que restabelece no direito
a igualdade natural entre os homens; é essa voz celeste que dita a cada cidadão
os preceitos da razão pública e o ensina a agir de acordo com as
máximas de seu próprio julgamento a não ficar em contradição consigo mesmo.”
[36]
Sempre favorecendo a mais ampla abertura para o outro, as idéias de
Rousseau sobre educação e política na sociedade legítima coroam um autêntico
encômio à fraternidade humana:
“Se as crianças são educadas em comum no seio da igualdade,
se estiverem imbuídas das leis do Estado e das máximas da vontade
geral, se forem instruídas no sentido de respeitá-las acima de todas as
coisas, se estiverem cercadas de exemplos e de objetos que incessantemente lhes
digam da terna mãe que os alimentou, do amor que têm por eles, dos bens
inestimáveis que recebem dela e da retribuição que lhe devem, não duvidemos que
desse modo aprendam a se querer mutuamente como irmãos, a não querer jamais
senão o que a sociedade deseja, a substituir o estéril palavrório dos
sofistas pelas ações de homens e de cidadãos e a se tornarem um dia os
defensores e os pais da pátria de quem por tanto tempo foram filhos.”[37]
Como se depreende do exposto – e de muito mais que todo mais que pode
ser colhido na obra de Rosseau – Rousseau desenvolve todo o seu pensamento
sobre educação ancorado em uma idéia de formação capaz de previnir a
possibilidade de ruptura ôntica, apta, pois, a fortalecer um certo tipo
de integração social.
Mas ficamos com algumas dúvidas. A primeira delas, talvez a mais
importante, diz respeito a esta questão: como eliminar a contradição
essencial no homem? A idéia rousseuaniana de sujeito acaba dependendo de
uma opção que privilegia o aspecto social: por este a boa sociedade se
define sempre como igualitária e justa; por este o indivíduo em sociedade só
chega à percepção de si pela percepção do outro. A constituição do “eu” ‘’
deriva, em última análise, de uma gestação referida ao “nós”. Mas, pelo exposto
vemos que a questão da unidade na alma do indivíduo deve sr compreendida
à luz da natureza da unidade do liame social. Rousseau deseja uma
integração radical entre o indivíduo e o Estado. Referindo-se a estes, observa:
“A vida de um e de outro é o eu comum ao todo, a sensibilidade
recíproca e a correspondência interna de todas as partes. Se essa comunicação
vem a cessar, a unidade formal a desfazer-se e as partes contíguas a só se
prenderem, uma à outra, por justaposição, o homem está morto ou o Estado
dissolvido.” [38]
Concluindo, insistimos em que, se é preciso discutir a
qualidade da síntese que forma o corpo político para aclarar a questão da
definição do homem-parte, também é verdade que só o exame de sua idéias
educativas aclara esse status ôntico. Rousseau, que não quer para a sua
‘polis’ homens sábios, mas homens bons, acentua isso com clareza, ao mesmo
tempo em que revela o caráter ‘político’ da educação:
“Não é suficiente dizer aos cidadãos - sêde bons: é preciso
ensiná-los a ser. O próprio exemplo que a esse respeito constitui a
primeira lição, não representa o único meio a empregar-se; o amor à pátria
constitui o meio mais eficaz, pois, como já disse, todo o homem é virtuoso
quando sua vontade particular em tudo se encontra de acordo com a vontade geral
..” [39]
Por essa razão, Rousseau mostra-se severo em seu julgamento histórico da
ação política do grande Péricles[40]:
“.. perguntarei unicamente se os atenienses se tornaram melhores
ou piores sob o seu governo; pedirei que nomeiem alguém entre os cidadãos,
entre os escravos ou até entre as crianças, que, graças a seus cuidados, se
tenha tornado um homem de bem. Aí está, parece-me, a primeira função do
magistrado e do soberano, uma vez que o meio mais rápido e certo de tornar os
homens felizes não é ornamentar suas cidades nem mesmo enriquecê-las, mas sim
torná-los bons.” [41]
Uma outra dúvida diz respeito aos direitos de cada um como homem. Se o
que prevalece, na ordem social, é o que o soberano determina e só o soberano é
juiz do ônus da alienação, cabe perguntar, ao final, o que, fora do âmbito do interesse
comum, será deixado residualmente à atuação de cada um.
Agora, resta saber se Rousseau não nos deixa precisamente
esta lição – o sonho de uma sociedade justa e igualitária, para cuja “bondade”
uma das condições fundamentais é o controle dos fins da educação e, por que
não, também, dos meios, poderá ser alcançado com outra alternativa que não a do
Estado bom que tenha a seu serviço o controle do ensino e da formação moral dos
homens? Pois como poderia ser diferente se a proposta de realização da
sociedade legítima pressupõe um mecanismo pedagógico que gere comportamentos naturalmente
sociais?
Se é tarefa precípua da educação pública gestar em cada um a espontânea
adesão ao espírito coletivo, não seria grande o risco de a figura do cidadão
sobrepor-se à figura do homem, absorvendo-a? E, por isso, não estaria Rousseau
mais próximo dos antigos e de sua idéia de liberdade?
Não se pode por em dúvida a fé de Rousseau na perfectibilidade do
homem e no poder da educação. Mas esse otimismo de base é prejudicado pelo
esforço que Rousseau, atormentado pelo medo da queda, é constrangido a
dispender, ao estabelecer princípios e mecanismos de controle que acabam por
limitar e dirigir essa perfectibilidade, sempre visando à moralidade e à
felicidade humanas. Nos resultados, um contrasenso, a nosso ver.
O homem é um ser de poderes, que lhe prometem o infinito. Na filosofia
educativa de Rousseau, isso está plenamente reconhecido, como princípio
positivo. Mas esse princípio positivo é enfraquecido e pode até ser anulado
quando condicionado, em sua aplicação, ao imponderável.[42] Rousseau,
que parece cultivar e preservar tanto a liberdade ao pensar a vida de Emílio na
sociedade degenerada, acaba, com medo da queda, por limitá-la, ao estabelecer
as condições ideais de estrutura e funcionamento da sociedade legítima. Pais
que muito amam seus filhos fazem a mesma coisa, pois agem com suas
crianças como se lhes estivessem a dizer: “sabemos que vocês podem e
querem ir mais longe, mas porque podem ferir-se, brinquem apenas e sempre no
quintal.”
Felicidade, moralidade e liberdade. São três conceitos fundamentais para
qualquer teoria política e educativa. A forma pela qual é pensada a
interligação entre eles é que vai determinar o tipo de regime, de
formacão humana e de estilo de vida que escolhermos. Rouseau não escapou a esse
esquema, com vimos. E, pensando o ideal, pôs no horizonte do homem, poderosa, a
figura do cidadão.
Contudo, fazer o homem bom e feliz não é, na filosofia liberal, tarefa
do Estado. Mas, sim, criar as condições para que cada um encontre, por si só, o
caminho do que julga ser a felicidade. O que nos devolve ao texto de
Constant e à sua brilhante crítica a Rousseau.
Resumo – O problema que nos interessa examinar aqui
diz respeito ao status ôntico do homem na teoria política de Rousseau. Na
verdade, o processo, que num sentido amplo chamamos de “socialização” e que em
Rousseau nada mais é do que “desnaturação”, é a idéia central do que poderíamos
configurar como o seu projeto de cidadania. Referidas a ele é que devem ser
discutidas suas posições acerca da participação e da liberdade. Nossa tese é
que, por si só, a teoria política de Rousseau, é infrutífera para
esclarecer a condição de homem-parte, mas, combinada com a sua teoria
sobre a educação, oferece preciosos subsídios nessa direção. Autor dos tempos
modernos, Rousseau contudo vai buscar inspiração nos valores da cidade antiga
para fundamentar a sua idéia de participação. E isso pode ser mais facilmente
compreendido com a discussão de seu ideal de Estado educador.
Palavras-chaves
bondade
natural – vontade geral - Estado Educador – virtude – lei – felicidade –
moralidade – bem público – cidadania.
[1] Esclareça-se
de imediato que as idéias de Rousseau sobre a cidadania estão espalhadas por
suas obras, não tendo, ele próprio, distinguido uma, em especial, que tratasse
diretamente do tema. Embora o Emílio, o Contrato Social
sejam fundamentais para essa questão, o cerne de seu pensamento a respeito
parece-nos encontrar-se no Da Economia Política.
[2]Essa
vontade,que Rousseau desígna como “vontade geral”, corresponde à vontade
moral, que legisla em prol da razão pública e, não, à vontade da maioria, que
pode, eventualmente, estar dissociada do interesse comum e ser-lhe inútil
ou, até mesmo, nociva. É no Contrato Social que Rousseau discute esse
conceito.
[3] Essas
divergências estão bem comentadas por Derathé em Jean-Jacques Rousseau
et la science politique de son temps. Paris:PUF, 1950.Em especial, cap. V –
La théorie de la souveraineté, iii. – Les limites de la souveraineté.
[4] O
desenvolvimento desse tema fazia parte de nosso projeto de pesquisa para a
livre-docência, que discutia a idéia de liberdade e cidadania em Platão e
Rousseau. Hoje restringimos nossa tese aos gregos antigos, e parte dos
resultados daquela investigação estão em nosso livro Platão, Rousseau e o
Estado Total. S.Paulo:TAQueiroz, 1996. Agora, ocupa-se do aprofundamento da
questão de que tratamos neste texto nosso orientando de mestrado da área de
Filosofia da Educação, Fábio de Barros Silva. Interessado na conexão
entre ética e política no pensamento de Rousseau, está iniciando sua
pesquisa justamente pela questão do núcleo arcaico das idéias de Rousseau.
[5] Destaco
o trabalho de Denise Leduc-Fayette, Jean-Jacques Rousseau et le mythe
de l’Antiquité. Paris: J. Vrin, 1974.
[6] Na visão
dos antigos - estamos pensando na Grécia arcaica e clássica, em Roma do período
republicano - predomina, em geral, sobre a figura do homem, a do cidadão.
Apenas para ilustrar esse ponto, leiamos Cícero, A República, I.4.8: “A
lei segundo a qual a pátria nos gerou ou criou não foi a de, por assim dizer,
não esperar nenhum sustento da nossa parte, e de ela providenciar as nossas
comodidades, fornecendo-nos um refúgio seguro para os nossos lazeres e um local
tranquilo para descansarmos, mas assegurar-se, ela mesma, para sua utilidade,
da posse da maior parte, em qualidade e quantidade, do nosso espírito, talento
e prudência, deixando-nos, para nosso uso privado, apenas aquilo que lhe
sobrava.” (trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Romana.
Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, 1986, 2a.
ed., p. 31.)
[7]Cf. Da
liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In Filosofia Política 2,
LPM – Unicamp/UFRGS, com apoio do CNPQ, 1985, p.16.
[8]ib., p. 16
[9]Ib., p. 17.
[10] Ib.,
p. 17. Constant insiste no mesmo ponto em De L’ Esprit de Conquête et de
L’Usurpation. Cf. 2a. parte, De L’Usurpation, cap. VII, p.
208 et sqs, in Cours de Politique Constitutionnelle, de Collection des Ouvrages
publiés sur le gouvernement représentatif. Paris: Librairie de Guillaumin et
Cie, 1861.
[11] Da
instrução publica ou Da organização do corpo ensinante.
Tradução de Roque Spencer Maciel de Barros.
[12] Da
instrução publica ou Da organização do corpo ensinante.
Tradução de Roque Spencer Maciel de Barros.
[13] Alguns
autores chegaram mesmo a ver no regime igualitário proposto por Rousseau as
bases da democracia totalitária. Tal é a posição, por exemplo, de Talmon.
[14] Contrato
Social, II, xii. In: J.-J. Rousseau - Obras, vol. II, Do Contrato
Social. Trad. de Lourdes Santos Machado. Editora Globo-RJ - P. Alegre -
S.P, 1962.
[15] Da Ec.
Pol., p. 290-3. In: J.-J. Rousseau – Obras. Cf. , vol. I – Da Economia
Política. Trad. de Lourdes Santos Machado. Editora Globo-RJ - P. Alegre - S.P,
1962.
[16]Ec. Pol.,
ed. cit., p. 294.
[17] J.
Rousseau, Oeuvres Complètes. Pleiade, 1964, t. III, Lettres Écrites
de la Montagne, 9ème, pp. 880-88. Trad. de Roque Spencer Maciel de
Barros e Gilda N. M. de Barros
[18]Rousseau
refere-se a diferentes momentos da história política de Genebra aos quais se
aplica o princípio geral a que se refere. Por ex., em 1707, um cidadão é
julgado clandestinamente, contra as leis, condenado, fuzilado na prisão e outro
é enforcado em virtude de um falso testemunho; ainda outro é encontrado morto.
Tudo é esquecido e só se fala disso em 1734, quando alguém se lembra de pedir
ao juiz notícias a respeito do cidadão fuzilado trinta anos antes.
[19] J.-J.
Rousseau, Oeuvres Complètes. Pleiade, 1964, t. III, Lettres Écrites
de la Montagne, 9ème, pp. 880-88. Trad. de Roque Spencer e Gilda N. M. de
Barros
[20] Cf. O
Contrato Social, ed. cit., p. 45-6.
[21] J.-J.
Rousseau, Oeuvres Complètes. Pleiade, 1964, t. III. Cf. Sur l’origine
de l’inégalité, p. 191-3.
[22] J.J.
Rousseau – Oeuvres Complètes. Pleiade, 1969, t. IV, Émile, pp.
249-50
[23] “A
passagem do estado de natureza para o estado civil produz no homem uma mudança
muito notável, substituindo em sua conduta o instinto pela justiça, e dando às
suas ações a moralidade que antes lhes faltava. É somente então que a voz do
dever, sucedendo ao impulso físico e o direito ao apetite, o homem, que até
então não tinha considerado senão a si próprio, se vê forçado a agir conforme
outros princípios, e consultar sua razão antes de ouvir suas inclinações.”
(J.J. Rousseau –J.-J. Rousseau, Oeuvres Complètes. Pleiade, 1964, t.
III, p. 364, todos os itálicos das citações neste artigo são nossos)
[24]
J.-J. Rousseau, Oeuvres Complètes. Pleiade, 1964, t. III, Sur l’économie
politique, p. 260.
[25]
“Resta, enfim, a educação doméstica, ou a da natureza. Mas o que se tornará
para os outros um homem educado unicamente para si? Se o duplo objetivo que se
propõe pudesse ser reunido em um só, tirando as contradições do homem se
tiraria, talvez, um tirando as contradições do homem se tiraria, talvez,
um grande obstáculo à sua felicidade.” (J.J. Rousseau – Oeuvres Complètes.
Pleiade, 1969, t. IV, Émile, p. 251.
rande
[26] A solução
encontrada por Rousseau para a sociedade ilegítima – que é, no fundo, a que nós
conhecemos e na qual vivemos, pode parecer sedutora aos olhos dos liberais, por
seu matiz estóico e evidente valorização da autonomia. A fragilidade de seu
encanto aparece quando confrontada com a organização da sociedade
legítima, na qual, rigorosamente falando, o campo jurídico e o campo moral
tendem a se encontrar. Nesse trânsito é que assoma, com toda a força, um
problema filosófico espinhoso, nascido da pretensão de Rousseau de
fundamentar a moral universal. De qualquer forma, o que Rousseau nos diz com a
sociedade do Contrato é: “Se se quiser preservar a bondade natural do
homem.....” pois Rousseau não pretendeu fazer revolução com as teses do
Contrato Social, mas postular as condições constitucionais ideais da
sociedade justa.
[27] J.J.
Rousseau – Oeuvres Complètes. Pleiade, 1969, t. IV,Émile et Sophie, p.
883.
[28] “A
educação pública, sob regras prescritas pelo governo e sob a responsabilidade
de magistrados designados pelo soberano, constitui, pois, uma das máximas
fundamentais do governo popular ou legítimo.” (Da Econ. Pol., ed. cit.,
p. 301)
[29]Mas é no Emílio
que se pode aprender o essencial sobre esse controle e disciplina.
[30]Econ. Pol.
ed. cit., p. 300.
[31] J.J.
Rousseau – Oeuvres Complètes. Pleiade, 1969, t. IV, Émile, p. 249.
[32]Roque
Spencer Maciel de Barros discute precisamente isto ao considerar os vários
sentidos da idéia de participação nos seguintes artigos: Da Participação
1 – In : “O Estado de S. paulo”, 24.II.1987; Da Participação 2
– In: “O Estado de S. Paulo”, 10.III.1987; Da Participação 3 – In “O
Estado de S. Paulo”, 17.III.1987; Da Participaçào 4 (final) – In:
“O Estado de S. Paulo”, 24.III.1987.
[33] Econ.
Pol. ed. cit., p. 300. O texto entre colchetes é nosso.
[34]Cf. Discurso
sobre as Ciências e as Artes; as Respostas a às críticas a esse Discurso
e o Prefácio de Narciso; Carta a d’Alembert sobre os espetáculos.
[35]Ec. Pol.,
ed. cit. p. 291.
[36]Ec. Pol.,
ed. cit., p. 291.
[37] Econ.
Pol., ed. cit., p. 301.
[38]Econ. Pol.
p. 288.
[39]Da Econ.
Pol., ed. cit., p. 296.
[40] Mesma
posição assumida pelo Sócrates platônico no Górgias.
[41] Última
resposta...., ed. cit., vol. I, p. 98; mesma posição nas Considerações
sobre o Governo da Polônia, onde Rousseau observa que não quer tornar a
Polônia uma nação rica e próspera, mas virtuosa. Cf. vol II, ed. cit., p.
306 em diante.
[42] Em Os
solitários, tão logo Emílio e Sofia alçam vôo para longe do
preceptor, postos à prova, desviam-se.